Publicidade

Estado de Minas BATE-PAPO

Criadoras do podcast Praia dos Ossos falam da repercussão do caso Ângela Diniz

Trágica história da "Pantera de Minas" é tema de programa mais de 40 anos após seu assassinato e vira até grupo de discussão nas redes sociais


postado em 27/01/2021 23:56 / atualizado em 27/01/2021 23:57

Ângela Diniz e Doca Street em fotos da década de 1970: casal era figura constante nas colunas sociais da época(foto: O Cruzeiro/Arquivo Estado de Minas)
Ângela Diniz e Doca Street em fotos da década de 1970: casal era figura constante nas colunas sociais da época (foto: O Cruzeiro/Arquivo Estado de Minas)
O caso Ângela Diniz, como ficou conhecido o assassinato da mineira pelo então namorado, Doca Street, na Praia dos Ossos, em Búzios (RJ), ganhou projeção nacional na época em que ocorreu, 1976. Primeiramente, porque os dois eram figuras conhecidas da sociedade. Depois, porque o julgamento de Doca (que morreu no último dia 18 de dezembro, aos 86 anos) foi polêmico - e para muitas pessoas, indignante - tanto pelas estratégias usadas para defendê-lo, quanto pela pena atribuída (na prática, ele saiu livre do tribunal). É, provavelmente o caso mais famoso em que foi usado o argumento da "legítima defesa da honra" para desculpabilizar o homem no assassinato de sua companheira. Mulheres organizaram-se em protestos, graças aos quais a opinião pública mudou, o julgamento foi anulado e um segundo júri condenou Doca a 15 anos de prisão.

Se para alguns o primeiro julgamento tinha demonstrado noções antiquadas dos papéis de homens e mulheres até para a época, usar esse tipo de estratégia em pleno século XXI não deveria mais funcionar. Contudo, funciona. Em 2020, foi parar no Supremo Tribunal Federal um caso referente a um assassinato de uma mulher por seu marido, ocorrido quatro anos antes, aqui em Minas, no qual foi alegada a mesma legítima defesa da honra - e o júri concordou. Também no ano passado saiu nos portais de notícias e nas redes sociais o vídeo de audiência do caso André Aranha, acusado de estuprar a influencer mineira Mari Ferrer, em que a conduta do advogado do acusado em relação a ela foi criticada - está sendo apurada pela OAB de Santa Catarina e pelo Conselho Nacional de Justiça.

Tanto para a carioca de 58 anos Branca Vianna quanto para a americana de 28 anos Flora Thomson-DeVeaux, criadoras do Praia dos Ossos - podcast narrativo sobre o caso Ângela Diniz - não se trata de coincidência ou timing que o programa tenha sido lançado na mesma época em que esses dois episódios foram discutidos na mídia. Afinal, dizem, ocorrências como essas acontecem, infelizmente, com muita frequência. Algumas apenas ganham mais notoriedade.

O podcast narra, em 8 episódios, a história da "Pantera de Minas", de como seu caminho cruzou com o de seu assassino, como ela era e como foi retratada, e o crime em si. Várias passagens envolvem Belo Horizonte, onde a mineira de Curvelo cresceu, inclusive com entrevistas com colegas dela do Santa Marcelina e com as feministas belo-horizontinas que lançaram os protestos pautados no lema "quem ama não mata". Apesar de ter sido um acontecimento muito repercutido, alguns jovens estão ouvindo pela primeira vez sobre Ângela e Doca por causa do programa - que ganhou até um grupo de discussão on-line com mais de 1.700 pessoas. Confira trechos da entrevista com Branca e Flora, feita por e-mail e por telefone:

Por que decidiram fazer o Praia dos Ossos?

Branca Vianna: A ideia surgiu da constatação de que as feministas mais jovens, como a Paula Scarpin e a Flora Thomson-DeVeaux, que fizeram o podcast comigo, não conheciam a história do assassinato da Ângela Diniz e da repercussão que a defesa do assassino teve no movimento feminista brasileiro. Conversando sobre o caso, achamos que daria um bom podcast.

Flora Thomson-DeVeaux: Foi isso mesmo, no final de 2018. Eu estava terminando o doutorado na Universidade Brown e Branca apareceu com duas propostas: nos chamou (eu e Paulinha) para fazer parte da Rádio Novelo e para embarcar nessa história, que seria o primeiro projeto grande dessa nova produtora de podcasts.

Nos episódios, vocês falam que um dos objetivos é dar espaço para a história da Ângela, que ficou limitada, anteriormente, à imagem de libertina, muito pouco profunda e multifacetada. Quais são características dela que vocês descobriram e que não tiveram espaço na cobertura do crime ou mesmo depois?

Branca: Descobrimos um mulher fascinante, com personalidade forte, que deixou saudades nas pessoas que a conheceram. Claro que, como todo mundo, ela era complexa. Todos somos. Mas ela era também diferente das outras mulheres de sua época e sua classe social. Segundo as pessoas com quem conversamos, ela era mais destemida, parecia seguir seus desejos sem pensar nas consequências, era impulsiva e corajosa, além de divertida e boa companhia.

Flora: Concordo com a Branca. Acho engraçado quando dizem que a gente "humanizou" ou "complexificou" a figura da Ângela, porque é evidente que todos somos humanos e complexos, e a imprensa - de mãos dadas com os advogados do Doca - é que achatou e desumanizou a figura dela. Tinha uma pessoa ali o tempo todo, prestes a ser "descoberta".

Branca Vianna:
Branca Vianna:"Acho importante conhecer o passado para avançarmos na luta feminista. Esse caso mostra como uma mobilização pode ter um efeito importante. É de certa forma uma validação do ativismo feminista. Vale a pena lutar" (foto: Arquivo pessoal)
Quando pesquisaram a vida da Ângela em Minas, tiveram a impressão de que BH é mais conservadora, mais preocupada com a imagem - como é a fama do Estado -, em relação a outras capitais, como Rio ou SP?

Branca: Não acho que seja uma peculiaridade de BH, nem de Minas Gerais, nem sequer do Brasil. Ângela cresceu nos anos 50, uma década notoriamente conservadora em termos de costumes no mundo inteiro.

Flora: Talvez a única diferença seja uma questão de escala: lendo as colunas sociais mineiras, me deu a impressão de uma high society ainda mais endogâmica e autocentrada. São as mesmas características, só que concentradas em menos gente.

O que descobriram sobre o apelido "Pantera de Minas"?

Branca: Esse termo nos intrigou ao longo de todo processo de produção do Praia dos Ossos. Chegamos a conversar com a "pantera" original, a primeira a quem o (colunista social) Ibrahim Sued deu esse apelido, a Sílvia Amélia de Waldner. Segundo ela, panteras eram as mulheres que ele achava bonitas e queria colocar na coluna. A Ângela era mais ousada do que as outras, de fato, e podemos até tentar inferir uma insinuação de perigo no fato dele chamá-la de pantera. Seria, porém, especulação, porque a Silvia Amélia não tinha nada de perigosa, era diferente da Ângela em termos de comportamento, seguia as regras impostas às mulheres na época, e mesmo assim foi chamada de pantera.

Flora: Acrescentaria que tinha várias outras "panteras" referidas nas colunas sociais - a pantera loura, a pantera morena, a pantera não sei o quê - e o que diferenciava a Ângela era justamente o fato de ser de fora do eixo Rio-São Paulo. Por isso "a pantera de Minas".

Outro objetivo do podcast, segundo vocês, era falar sobre esse capítulo pouco conhecido do movimento feminista no Brasil. Qual foi a importância da reação feminista para o resultado do segundo julgamento do Doca?

Branca: A reação feminista foi fundamental para virar a opinião pública contra a ideia da legítima defesa da honra naquele caso específico. As feministas fizeram uma campanha muito estratégica e eficaz na imprensa. Fizeram de tudo, desde atos públicos e manifestos até panfletar na praia de Ipanema para convencer os banhistas a apoiarem uma revisão do caso.

Flora: Na véspera do segundo julgamento, já era consenso entre os advogados de ambos os lados que as feministas tinham mobilizado a imprensa de forma muito hábil para fazer a opinião pública virar. A gente vê isso na origem do movimento Quem Ama Não Mata, por exemplo, em que várias participantes eram jornalistas e usaram do seu conhecimento do que seria uma pauta interessante, e até o timing da transmissão para o Jornal Nacional, para potencializar o ato que fizeram em agosto de 1980.

Qual a importância de retomar esse caso hoje?

Branca: Acho importante conhecer o passado para avançarmos na luta feminista. Esse caso mostra como uma mobilização pode ter um efeito importante. É de certa forma uma validação do ativismo feminista. Vale a pena lutar.

Flora Thomson-DeVeaux:
Flora Thomson-DeVeaux: "Lendo as colunas sociais mineiras, me deu a impressão de uma high society ainda mais endogâmica e autocentrada. São as mesmas características (do eixo Rio - São Paulo), só que concentradas em menos gente" (foto: Arquivo pessoal)
Coincidentemente, no mês seguinte à estreia do podcast, saiu uma notícia de que o STF acabara de acatar uma absolvição por legítima defesa da honra, relativa a um caso de 2016, também aqui de Minas. O que acham desse argumento ainda ser usado?

Branca: Infelizmente não é uma coincidência de timing. Esse caso que chegou ao STF é de 2016, mas sabemos de casos até mais recentes. No último episódio do podcast conversamos com um advogado do Paraná que usa até hoje, com sucesso, a legítima defesa da honra para diminuir a pena de seus clientes. O caso que ele nos conta no episódio, de um homem matou a esposa porque leu mensagens no celular dela, é de 2018. Ele não foi absolvido, mas recebeu uma sentença leve para cumprir em regime aberto.

Entre os ouvintes do podcast, há quem ainda não conhecesse o caso?

Flora: Não temos um perfil claramente definido. Pelo que vemos de manifestações nas redes, grande parte é de um público jovem, de até 30 anos, que não conhecia o caso antes.

Sobre o que conversam no grupo de discussão do Praia dos Ossos?

Flora: Está sendo muito interessante observar a conversa coletiva de pessoas de várias origens e idades, tentando navegar as complexidades do caso. Conversa-se de tudo, desde curiosidades sobre detalhes que ficaram de fora do podcast, interpretações dos personagens que aparecem ao longo da história, repercussão de notícias como essa decisão recente do STF e o caso da Mariana Ferrer…

Acharam que o podcast teria o alcance que tem tido?

Branca: Eu tinha a expectativa de que o podcast teria um alcance grande, por ser um dos primeiros podcasts narrativos com pesquisa tão ampla e profunda feitos no Brasil. Também acho a história muito interessante, com ganchos para vários públicos: quem gosta de celebridades, quem gosta de crime, quem é feminista, juristas, e também só quem gosta de boas histórias. Mesmo assim, a repercussão me surpreendeu. Estamos muito felizes com isso.

Analisando casos mais recentes em comparação com o da Ângela, têm a impressão de que houve avanço?

Branca: O que mudou, na minha opinião, é a reação da sociedade. O caso da Mariana Ferrer, por exemplo, como foi muito divulgado, a reação da sociedade foi muito forte. Vimos muitas matérias, houve protestos no fim de semana seguinte em várias cidades no Brasil. E isso é um avanço muito importante, vale ressaltar. Não é que a gente não saiu do lugar.

Os comentários não representam a opinião da revista e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação

Publicidade