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Estado de Minas ENTREVISTA

Laurentino Gomes fala sobre a escravidão, tema de seu novo livro

Minas Gerais é o centro da segunda obra da trilogia sobre trabalho escravo do jornalista. De acordo com o autor, o estado teve importante papel no surgimento da "escravidão urbana"


postado em 03/08/2021 23:14

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(foto: Divulgação)
(foto: Divulgação)
Na segunda metade do século XVIII, Minas Gerais tinha a maior concentração de pessoas negras de todo o continente americano. A corrida do ouro impunha no território um comércio frenético de pessoas, de escravos. "Um homem anônimo, negro ou mestiço, descendente de africanos escravizados, teria sido o res - ponsável pela descoberta de ouro em Minas Gerais", afirma o jornalista Laurentino Gomes, que lançou recente - mente sua segunda obra da trilogia sobre o período. "Escravidão - Da Corrida do Ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de Dom João ao Brasil" reúne informações robustas e curiosas sobre a época. Uma delas diz respeito ao roubo da cabeça de Tiradentes, que estava exposta no centro da antiga Vila Rica, atual Ouro Preto. As obras de Laurentino, fruto de pelo menos seis anos de pesquisas, inúmeras viagens pelo Brasil e exterior (confira algumas fotos de suas andanças nas próximas páginas), vêm, de certa forma, reescrevendo esse período tão marcante da história brasileira e que insiste em permanecer por aqui. "A nossa população negra aparece como a parcela da sociedade com menos oportunidades e a que mais sofre com a violência e a desigualdade social crônicas no Brasil. À Encontro, Laurentino fala também sobre a urgência de lidarmos com o tema e os mitos em torno do período.

  • Quem é: Laurentino Gomes

  • Origem: Maringá (PR)

  • Formação: Jornalista (Universidade Federal do Paraná), com pós-graduação em administração pela USP

  • Carreira: Sete vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura, é autor dos livros 1808, sobre a fuga da corte portuguesa de dom João para o Rio de Janeiro (eleito Melhor Ensaio de 2008 pela Academia Brasileira de Letras); 1822, sobre a Independência do Brasil; e 1889, sobre a Proclamação da República, além de O Caminho do Peregrino, em coautoria com Osmar Luduvico da Silva - todos publicados pela Globo Livros. É titular da cadeira de número dezoito da Academia Paranaense de Letras.

ENCONTRO - Como nasceu a ideia de escrever sobre a Escravidão e dividir a obra em três?

LAURENTINO GOMES - Os planos de escrever sobre a escravidão são bem antigos, desde a época em que comecei a pesquisar e a escrever meu primeiro livro, lançado quatorze anos atrás. Ao tentar descrever o que era o Brasil em 1808, ano da chegada da corte de Dom João ao Rio de Janeiro, eu me dei conta que o tráfico negreiro e o uso intensivo de cativos africanos tinham sido a principal característica da colônia portuguesa nos três séculos anteriores. Essa mesma percepção repetiu-se ao me debruçar sobre as duas datas seguintes, 1822 e 1889. É quase impossível explicar o processo de independência, o primeiro e o segundo reinados e, depois, a Proclamação da República, sem estudar a escravidão. É como se fosse o fio condutor dos nossos principais eventos históricos. No livro 1822, por exemplo, eu explico que o Brasil se manteve como monarquia depois da independência devido à soma de dois medos: o de uma guerra civil republicana que dividisse o país, à exemplo do que estava ocorrendo na América Espanhola, e o de uma guerra étnica, em que os escravos pegariam em armas contra seus senhores. Esses dois medos, somados, fizeram com que a elite rural escravista brasileira cerrasse fileiras ao redor do herdeiro da coroa portuguesa, o futuro imperador Pedro I, rompesse os vínculos com Portugal, mas mantivesse intacta a estrutura social vigente, sobretudo a escravidão e o tráfico negreiro. Ao dar esse mergulho mais profundo, eu me dei conta de que o assunto mais importante da nossa história não são os ciclos econômicos, as revoluções, o império ou a monarquia. É a escravidão. Tudo o que nós já fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com as nossas raízes africanas e no modo como nos relacionamos com elas.

O filósofo Vladimir Safatle diz que o Brasil é um país que nunca "acertou as contas com o seu passado". É uma referência, por exemplo, à escravidão. É uma explicação, por exemplo, para ainda não termos um museu da escravidão no país?

Até muito recentemente, a história africana e da escravidão negra no Atlântico era tratada como tema secundário, quase casual, nos livros didáticos e na historiografia oficial. Isso não aconteceu por acaso. É resultado de um propósito de esquecimento. O projeto nacional de abandono e apagamento fez com que nossa história negra e africana fosse relegada a um segundo plano nos livros didáticos. E, não por acaso, nunca tivemos um grande museu nacional da escravidão e da cultura negra. Museus, como se sabe, não são apenas lugares de passeio e entretenimento. São locais de estudo e reflexão. Não ter um museu com esse perfil é, portanto, parte desse projeto nacional de esquecimento. O Brasil, maior território escravagista do hemisfério ocidental, abandonou os ex-escravos e seus descendentes à própria sorte depois da Lei Áurea. Nunca se preocupou em lhes dar terra, trabalho, educação e oportunidades. Abandonou também a própria memória da escravidão.

"O século XVIII é o período mais importante da construção das muitas Áfricas que hoje existem no coração do Brasil. E isso é particularmente importante em Minas Gerais" (foto: Divulgação)
Você acha que as escolas ensinam o tema de maneira adequada? De forma crítica?

O tratamento da escravidão nos livros didáticos e nas salas de aula já foi pior no Brasil. Felizmente, está mudando. Atualmente, existem leis que obrigam a inclusão da história da África e da cultura negra brasileira na grade curricular. Nós, brasileiros, precisamos urgentemente nos reconciliar com o nosso passado africano. A escravidão não é assunto exclusivo de direita ou de esquerda, de brancos ou negros. É um tema com o qual todos nós deveríamos nos preocupar, independente da cor da pele ou das origens étnicas e culturais. Todos nós que estamos vivos hoje somos descendentes de escravos ou de senhores de escravos. O legado da escravidão, que se traduz em desigualdade social no Brasil, é um desafio urgente, que exige nossas atenções e esforços como cidadãos.

Há algum mito, ou ideia errada, que você descobriu em torno da escravidão que é bastante disseminada?

Existem duas visões ultrapassadas a respeito do comportamento do escravo dentro do sistema escravista ficaram ultrapassadas. A primeira, celebrizada por Gilberto Freyre, é a do negro passivo e apático, bem adaptado ao mundo dos brancos e vivendo sob as ordens da casa senhorial e relativamente benévola, incapaz de reagir, protestar ou se rebelar. A segunda visão anacrônica, nascida das ideias e lutas marxistas do século XX, é a do negro em permanente estado de rebelião, constantemente planejando ações para se livrar do cativeiro. Pesquisas mais recentes têm ampliado o foco para incluir outros aspectos da resistência negra, menos dramáticos do que as fugas e rebeliões, mas igualmente importantes. Elas têm levado a um entendimento mais complexo e diversificado do escravismo, marcado por nuances até pouco tempo atrás ignoradas ou subestimadas, nas quais os cativos se envolviam em processos contínuos e sutis de negociação e barganha, sempre testando os limites do sistema escravista em busca de ampliar seus espaços e oportunidades.

Você visitou inúmeros países para a produção dos livros. Lá fora, as pessoas têm um entendimento diferente do que foi a escravidão no Brasil?

A escravidão é o tema mais estudado na disciplina de história em muitos países, especialmente naqueles em que as feridas ainda estão abertas na forma de preconceito ou desigualdade social, como no Brasil, nos Estados Unidos e na região do Caribe, todos grandes territórios escravistas até o século XIX. Mas existem ênfases diferentes. Um dos aspectos mais estudados relaciona-se com a chamada história comparada, que procura identificar semelhanças e diferenças entre os sistemas escravistas de cada região. A alta taxa de alforria é, por exemplo, um traço que diferenciou o escravismo brasileiro de todos os demais no continente americano. Havia mais possibilidades de um escravo alcançar a liberdade no Brasil do que no sul dos Estados Unidos ou nas colônias europeias do Caribe. Essas diferenças levaram muitos estudiosos a defender a ideia de uma escravidão mais branda, paternalista e relaxada no Brasil, que, por sua vez, teria resultado em um país com menos barreiras raciais, particularmente quando comparado aos Estados Unidos. É uma visão equivocada. Os cativos brasileiros foram sempre tratados com violência como em qualquer outro território escravista. Havia, sim, espaços para alianças e negociações, mas alforria foi geralmente mais uma conquista dos escravos do que uma concessão dos escravizadores.

"O projeto nacional de abandono e apagamento fez com que nossa história negra e africana fosse relegada a um segundo plano nos livros didáticos" (foto: Divulgação)
Pelo menos 2 milhões de escravos entraram no país no século 18, de acordo com a sua pesquisa. Como a sociedade brasileira passou a se organizar a partir disso, e, sobretudo, Minas Gerais que virou centro da escravidão nessa época?

Um tema importante neste segundo volume da trilogia são as enormes contribuições dos africanos para a construção do Brasil. Elas podem ser exemplificadas pela história de um homem anônimo, negro ou mestiço, descendente de africanos escravizados, que teria sido o responsável pela descoberta de ouro em Minas Gerais no final do século XVII. Infelizmente, sabe-se muito pouco a seu respeito. O único registro que dele sobrou está nesta passagem do livro "Cultura e Opulência do Brasil pelas suas Drogas e Minas", do padre jesuíta André João Antonil. Ele é também um exemplo do apagamento da memória negra e africana no Brasil. Até recentemente, uma historiografia ufanista atribuía quase que exclusivamente aos bandeirantes, todos homens supostamente brancos, a façanha pela descoberta de ouro e diamantes e a consequente ocupação do território brasileiro na primeira metade do século XVIII. Isso é parcialmente verdadeiro. Embora relegados ao segundo plano nos museus, livros e salas de aula, negros e mestiços foram, muitas vezes, protagonistas, em vez de atores secundários, nos grandes acontecimentos da história do Brasil.

A partir da "Corrida do Ouro", Minas Gerais se tornou lugar com mais escravos na América Latina. Aconteceu algo no estado que fugiu do usual em relação a outros lugares que também tiveram cativos?

Na segunda metade do século XVIII, Minas Gerais tinha a maior%u202Fconcentração%u202Fde pessoas negras de todo o continente americano. Os brancos formavam uma minoria relativamente insignificante. As pesquisas em Minas Gerais me ajudaram a entender o quanto a escravidão se tornara corriqueira e banal no Brasil daquela época. Ao ponto de abrir o texto de introdução do livro descrevendo um objeto hoje existente no Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte. É uma balança de pesar de escravos, usada para definir o valor de seres humanos antes de leilões de praça pública, da mesma forma como, na época, se usavam balanças para pesar bois,%u202Fporcos, galinhas, queijos, sacos de farinha de trigo, de feijão e de arroz. Leilões em praça pública para a venda de pessoas no atacado e no varejo se tornaram cenas habituais. Nessas ocasiões, homens e mulheres eram lavados, depilados, esfregados com sabão, untados com óleo de coco ou dendê, pesados, medidos, examinados e apalpados em suas partes íntimas, obrigados a correr, pular e exibir a língua e os dentes. Ao término desse metódico ritual, vendedores e compradores acertavam o preço de acordo com a idade, o sexo, o vigor físico e as habilidades dos cativos que, em seguida, eram marcados a ferro quente com as iniciais da fazenda ou do nome do seu novo proprietário.

Como sua pesquisa conversa com os movimentos afirmativos atuais? Ao começar seus trabalhos, imaginava que podíamos viver casos como o de George Floyd, nos Estados Unidos, e de João Alberto Silveira Freitas, morto em um supermercado no Rio Grande do Sul?

Esses fatos reforçam em mim a convicção de que esta série de livros chegou em boa hora. A escravidão foi uma grande tragédia que, infelizmente, não está congelada, acabada e presa no passado. Ou seja, não é apenas assunto de museu e livros de história. É uma realidade presente e assustadora no mundo e no Brasil de hoje. Também explica muitas das nossas dificuldades do presente. Nossos grandes abolicionistas do século XIX, como Luiz Gama, Joaquim Nabuco, André Rebouças e José do Patrocínio, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Essa segunda abolição o Brasil jamais fez. O resultado está hoje nas estatísticas e indicadores sociais, onde a nossa população negra aparece como a parcela da sociedade com menos oportunidades e a que mais sofre com a violência e a desigualdade social crônicas no Brasil.

"O legado da escravidão, que se traduz em desigualdade social no Brasil, é um desafio urgente, que exige nossas atenções e esforços como cidadãos" (foto: Divulgação)
Em um dos vídeos de divulgação de seu livro, gravado em Ouro Preto, você fala sobre o mistério do sumiço da cabeça de Tiradentes. Há teorias sobre o que foi feito dessa cabeça e porque ela foi roubada?

Esse é um dos grandes mistérios na história do Brasil. Depois de enforcado e esquartejado no Rio de Janeiro, Tiradentes teve partes de seu corpo expostas ao longo da estrada para Minas Gerais, para servir de exemplo aos súditos da coroa portuguesa que, eventualmente, tivesse planos de se rebelar. A cabeça ficou alguns dias espetada no alto de um posto no centro de Vila Rica, atual Ouro Preto. Até que alguém a retirou do local, às escondidas, durante a noite. E, desde então, nunca mais se soube que destino teriam lhe dado. Há várias hipóteses. Uma delas diz que um grupo de maçons, adeptos da inconfidência, a teriam enterrado secretamente nos fundos de uma casa. Mas isso nunca se comprovou. Tiradentes é importante no meu livro porque representa uma contradição nos grandes movimentos libertários do século XVIII. A independência Americana, a Revolução Francesa e a Inconfidência Mineira, entre outras rupturas, tinham um traço em comum: eram todas transformações brancas, que deixavam à margem da população negra e escravizada, a esta altura calculada em milhões de seres humanos em todo o continente americano. Os documentos, manifestos e discursos falavam em liberdade, direitos para todos, participação popular nas decisões, mas seus autores conviviam naturalmente com a escravidão, como se a defesa dessas ideias não dissesse respeito aos negros. O próprio Tiradentes, no ano de sua morte, era dono de seis escravos.

A pandemia de alguma forma dificultou suas pesquisas?

Felizmente, a maior parte da pesquisa para este segundo volume já estava pronta no começo da pandemia. Eu já tinha lido quase toda a bibliografia e visitado os locais relacionados aos temas do livro. Entre outros lugares, eu tinha já percorrido as cidades do ciclo do ouro e do diamante em Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, visitado quilombos na Paraíba, engenho de açúcar em Pernambuco e terreiros de candomblé na Bahia. Faltava apenas organizar todo o vasto material recolhido, depois escrever e editar o livro. Por essa razão, curiosamente, a pandemia me ajudou a concluir o trabalho rapidamente. Como eu fui obrigado a parar de viajar, só me restou a alternativa de me recolher em casa e escrever. Concluí a escrita em menos de cinco meses, mas, ainda assim, tivemos de adiar o lançamento.

Em "As Veias Abertas da América Latina", Eduardo Galeano, já havia falado da explosão da escravatura em Minas Gerais por causa da busca do ouro. Ele escreve que a exploração não só fez crescer o número de escravos por aqui como absorveu boa parte da mão de obra negra de outras regiões do Brasil. O que mais lhe chamou atenção ao pesquisar o tema?

Em Minas Gerais se podem observar três diferentes fenômenos que marcaram o escravismo brasileiro no século XVIII. O primeiro foi o nascimento de uma escravidão urbana, de serviços, de características muito diferentes daquela observada nas antigas lavouras de cana-de-açúcar que ainda predominavam na região nordeste. A escravidão urbana deu maior mobilidade aos escravos e gerou uma nova cultura afro-brasileira com profundas influências em todos os aspectos da vida colonial, incluindo a culinária, o vestuário, as festas e danças, os rituais religiosos e o uso dos espaços públicos. O trabalho escravo foi responsável pelo surgimento de dezenas de novas vilas e cidades no interior do Brasil. Arquitetos, mestres de obra, pintores, escultores e compositores negros ou mestiços, escravos e libertos, caso de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, construíram palácios e igrejas barrocas que ainda hoje deslumbram turistas e estudiosos do mundo inteiro em visita às cidades históricas mineiras. O segundo fenômeno foi o crescimento dos processos de alforria. Em Minas Gerais, o aumento da população negra e mestiça livre foi particularmente acelerado. O terceiro fenômeno importante diz respeito ao papel das mulheres. Foram elas as protagonistas de inúmeras histórias de resiliência e superação que mudaram a paisagem escravista brasileira. Nessa condição agiram ativamente não apenas para conquistar a liberdade de seus maridos e filhos, mas também para transformar a sociedade em que viviam.

Ao andar por Minas Gerais teve alguma surpresa positiva? Viajar por cidades históricas como Ouro Preto, Diamantina e São João Del Rey, com a questão da escravidão em mente, o fez olhar para coisas que nunca havia percebido anteriormente?

O século XVIII é o período mais importante da construção das muitas Áfricas que hoje existem no coração do Brasil. E isso é particularmente importante em Minas Gerais. Os traços da herança negra e africana estão por toda parte, na dança, na música, no vocabulário e na culinária, nas crenças e costumes; na luta do dia a dia, na força, no semblante e no sorriso das pessoas. Estão também na paisagem e na arquitetura, cifradas na forma de símbolos e desenhos gravados nas paredes e fachadas das casas e casarões, nos altares e pinturas das igrejas, nos terreiros de umbanda e candomblé. Fiquei particularmente impressionado ao visitar a Igreja de Santa Efigênia de Ouro Preto, construído por negros escravizados, e observar, com a ajuda de um guia muito experiente, os sinais e códigos de origem africana escondidos ou cifrados em meio às esculturas e desenhos em alto relevo dos altares.  

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