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Estado de Minas ENTREVISTA

Pediatra fala sobre cuidados que pais devem ter com os filhos nas redes sociais

Ela esclarece quando é hora de suspender o acesso e comenta sobre o dilema da privacidade


postado em 19/10/2021 09:16 / atualizado em 19/10/2021 09:19

"É preciso tomar cuidado com exposição precoce de crianças, pois pode ser difícil perceberem que esse mundo das mídias sociais tem regras particulares que não se traduzem na realidade" (foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
"A vida só presta quando se é feliz offline primeiro." Foi com essa frase que a médica paulista Fernanda Rocha Kanner finalizou uma postagem em seu Instagram onde explicava aos fãs de sua filha de 14 anos, Nina Rios, o porquê de ter decidido deletar as redes sociais da menina, que tinha mais de 2 milhões de seguidores no TikTok. Ainda que fossem perfis com um número mais comum de seguidores, na casa das centenas, a atitude já poderia ter sido tema de debate, pois cortar totalmente a presença dos filhos nas redes é uma escolha polêmica. Tratando-se de uma filha "influencer", então, o post da mãe, feito em julho passado, deu o que falar. Ainda neste segundo semestre, foi divulgado por portais de notícia o suicídio de um adolescente de 16 anos, filho da cantora paraibana Walkyria Santos, após comentários odiosos e homofóbicos em um post que havia feito no TikTok. Em seu estado, foi sancionada no fim de agosto uma lei que cria o Programa Estadual de Combate ao Cyberbullying Lucas Santos - em homenagem ao garoto.

A decisão dos pais sobre permitir a presença dos filhos nas redes, a partir de qual idade, de que maneira ou por quanto tempo não é fácil. Especialmente na pandemia, quando ainda está restrita a possibilidade de socialização entre os pares, as telas têm sido ferramentas úteis na interação, e as redes sociais, um espaço de convívio dos jovens. Isso não significa, contudo, que combinados e limites não sejam necessários, ao contrário. "Como tudo na vida -  e como foi a vida inteira -, é preciso combinar como vai ser o funcionamento, a dinâmica de uso", explica a pediatra Débora Marques de Miranda, professora da UFMG e membro do grupo de pesquisa SAMBE, de saúde mental baseada em evidências.

Segundo ela, não há uma resposta certa sobre qual é o momento adequado para a entrada dos filhos no mundo das mídias sociais. No entanto, ressalta que, quando isso ocorrer, é necessário conversar, e muito. É preciso falar sobre o mecanismo de funcionamento das redes - algoritmos que entregam conteúdos específicos, arquitetura feita para que se fique dentro do app o maior tempo possível, etc -, sobre comentários, críticas, haters, elogios, e também sobre exposição e privacidade. A médica também alerta sobre sinais de que há excesso no uso, quando há mais preocupação com a vida online do que offline e comprometimento de outros aspectos da vida por causa das redes. Nesta entrevista a Encontro, ela diz, ainda, que há, sim, situações em que suprimir o acesso pode ser necessário: "mesmo que seja complexo em um primeiro momento retirar esse uso, está se assumindo que o dano é maior se ele não for retirado".

  • Quem é: Débora Marques de Miranda, 44 anos

  • Origem: Belo Horizonte

  • Formação: Médica pediatra, graduada pela UFMG, com especialização em pediatria pelo Hospital das Clínicas da UFMG, mestrado e doutorado pela mesma universidade e pós-doutorado pela Universidade de Melbourne

  • Carreira: Professora do departamento de pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG, é membro do Nítida - centro com atendimento multidisciplinar para crianças com Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) e/ou Transtorno de Oposição Desafiante (TOD) - e do SAMBE - grupo de pesquisa de saúde mental baseada em evidências, que é multiinstitucional e tem entre os participantes a UFMG

ENCONTRO - Como conversar com os filhos sobre o funcionamento das redes sociais, como os mecanismos de gratificação e o fato de que os apps são desenhados para se ficar conectado o maior tempo possível?

DÉBORA MARQUES DE MIRANDA - É sempre muito complexo, não se tem certezas absolutas. Os mecanismos relacionados ao uso de mídias sociais são viciantes, como se fossem uma drug addiction leve, porque giram em torno de recompensas. O raciocínio em relação ao uso excessivo de telas é parecido, inclusive, para o caso de intervenção. Os pais precisam ter ciência e discutir isso com os adolescentes. Não precisa haver pressa para começar nas redes sociais, mas, às vezes, elas têm um caráter de socialização e pode ser que seja importante fazer parte. Se os pais optarem por permitir a presença dos filhos nas redes, devem regrar essa presença. Como com tudo na vida -  e como foi a vida inteira -, é preciso combinar como vai ser o funcionamento, a dinâmica de uso. E também deixá-los sabedores dos mecanismos das redes. Em situações em que se perdeu o limite, em que se percebe o comprometimento funcional no dia a dia, pode ser interessante suprimir a possibilidade de acesso. Mesmo que seja complexo em um primeiro momento retirar esse uso, se está assumindo que o dano é maior se ele não for retirado.

É possível que reações negativas a um post possam ser gatilhos para depressão e outros quadros do tipo?

Acredito que a questão seja trabalhar a expectativa da pessoa quanto à rede, mostrar que a rede tem lado positivo e lado negativo. Assim como na escola sempre há o risco de pessoas que podem fazer bullying, na rede social isso também pode acontecer. O adolescente é, per se, um ser social, seus parâmetros são sociais, ele valoriza o retorno principalmente dos pares, de seu grupo. Então, para ele, essas opiniões podem ter um impacto maior ainda. Por isso é importante prepará-lo sobre o fato de que vai ouvir coisas negativas na vida - e na rede - e sobre a devida importância desses comentários (que pode ser absolutamente nenhuma). Além disso, conversar sobre as motivações por trás dos comentários, que nem sempre retêm qualquer valor efetivo. Outro fator é que estamos em uma situação de muita vulnerabilidade na pandemia, mais distanciados há muito tempo, muito expostos à tela, muito lábeis emocionalmente. Os pais têm de ter tranquilidade para monitorar as mídias, observar, e discutir o que está ali, bem como falar sobre o que não é adequado postar. Faz parte da educação ensinar o que deve ou não postar, a que tipo de exposição estamos susceptíveis.

Como lidar com o fato de que não há controle quanto ao tipo de conteúdo que pode aparecer no feed, que pode ir desde posts incentivando cirurgias plásticas a desafios de mau gosto?

A gente tem a possibilidade de educar sempre. Esse mecanismo acontece, é preciso deixar os meninos alertas, pois eles vão viver dentro do mundo das mídias sociais. O que a gente consegue moldar é o quanto e como, e instruir com o máximo de clareza. É preciso ensinar como se poupar, como se preservar. E que o valor daquilo que aparece para eles na rede não tem significado maior do que ter sido o que o algoritmo identificou como de interesse, como parecido com algo que você já viu. Outro ponto é trabalhar a autoestima dos filhos, a sua sustentação fora dos ambientes eletrônicos. Isso é importante para que sejam bons usuários, olhem para os conteúdos que aparecem com crítica e com tranquilidade, sabendo que o algoritmo está ali por motivos econômicos, não se trata de juízo de valor.

E em relação à comparação com a vida do outro, com a grama do vizinho, que parece sempre mais verde nas redes?

É preciso que entendam, que reconheçam, que o ambiente ali é artificial. É preciso que reflitam sobre o que estamos trazendo das redes sociais para o nosso dia a dia e o que estamos levando para elas. Porque fica parecendo que tem de estar todo mundo bonito o tempo todo, que todo mundo é engraçado, e isso é fora do contexto de realidade.

Em relação aos jovens influencers, o que muda, na sua opinião, quando comparamos com atores mirins, garotos-propaganda, que existem há muito tempo?

A dinâmica é parecida com a dos atores mirins de outrora, mas acho que agora é algo que se popularizou, então, temos mais pequenos astros. Assim, devemos ter ainda mais cuidado em manter o alerta em relação a tempo de tela, à exposição, ao que pode ser levado para as redes ou não. Nós vimos muitos atores mirins serem criados com pouco limite, como pequenos astros, sem ter tido tempo para ter a formação adequada, e vimos experiências muito duras pessoalmente, com vidas complicadas na idade adulta. Então é preciso tomar cuidado com exposição precoce de crianças, pois pode ser difícil perceberem que esse mundo das mídias sociais tem regras particulares que não se traduzem na realidade.

O fato de que a fama vem por uma exposição do dia a dia, sem limites claros em relação à vida privada, isso pode ser uma diferença significativa?

Esses limites têm de estar sempre claros. Vemos adolescentes que mandam nudes, que passam por situações inusitadas em festas e depois há muito arrependimento, e isso acontece especialmente quando estão frágeis. Temos de tentar minimizar essas situações. O que é privado e o que é público mudou um pouco em termos de forma, mas não saiu de moda o valor da privacidade. Está mais difícil ensinar o que é o privado e o público, e acho que a pandemia serviu para ampliar essa questão ainda mais, pois ficamos sempre dentro de casa, vivendo a vida cotidiana em grande parte no lar, trabalhando em casa, etc. Mas isso ainda é um dos grandes valores que podemos passar para s meninada.

Crianças devem ter redes sociais, ainda que monitoradas pelos pais?

Não existe uma diretriz sobre isso. Não há opinião consolidada em literatura médica quanto a essa questão. Mas eu diria que não é preciso ter pressa. O que posso dizer é que a gente não vê nenhum benefício em expor a criança precocemente, ou seja, não há evidências para o mal, mas também não há para o bem. E ressalto que meninas são mais suscetíveis, têm padrão de cobrança física e psicológica muito grande e, em geral, são mais afetadas pelo conteúdo.

Quando é a hora de cortar o uso das redes?

Se o uso ultrapassou o limite da funcionalidade na vida real, tem de parar. Se o filho ou filha começa a viver para isso, dá sinais de que está ficando dependente, vivendo em função da rede social, é preciso suspender. Redes sociais são apenas uma das coisas da vida, têm de ser só uma entre várias, não se pode viver para elas, mesmo que se trabalhe com isso. É preciso esse distanciamento.

Quais são sinais de que as redes estão impactando negativamente a vida do jovem?

Comprometimento do dia a dia, ou seja, do sono, da alimentação, muito isolamento social, quando está usando as telas muito mais tempo do que o máximo de três horas recomendadas, uso de plataformas com conteúdo inadequado, mudança de comportamento, a pessoa ficar mais irritada, chorosa, com alterações de humor. E quando demonstra essa sobrevalorização do que é visto na mídia social.

Quais combinados e limites sugeriria para as famílias?

É preciso ter regras da família em relação ao uso, manter alguns horários protegidos. No pior dos cenários, o celular não pode ir para a mesa e não pode ir para a cama. Para a mesa, porque nas famílias que dividem a refeição e conversam, adolescentes têm menos instabilidades ao longo da vida, isso é melhor para a saúde mental da família, além de se ter mais consciência do que se está comendo. E para o quarto, para evitar o uso próximo ao horário de dormir e também de madrugada - o que tem sido um fenômeno muito comum, os meninos acordarem no meio da noite para checar o telefone. É possível fazer o cantinho do celular, combinar de ficar em intervalos mais longos offline... É preciso ver o que cabe na vida da família e organizar as regras.

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