Estado de Minas ESPECIAL DIREITO

Nefi Cordeiro defende maior limite e controle em todas as áreas do judiciário

Em entrevista à Encontro, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça fala, ainda, sobre o "Pacote Anticrime" e explica por que vê pontos positivos e negativos no instrumento da Delação Premiada


postado em 20/02/2022 23:33 / atualizado em 20/02/2022 23:37

(foto: Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/D.A Press)
(foto: Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/D.A Press)
O curitibano Nefi Cordeiro estreou nova fase na carreira. De ministro do Superior Tribunal de Justiça, ele agora mergulha no universo da advocacia. Foram mais de 30 anos dedicados à magistratura, sete dos quais no STJ, período em que pôde se debruçar em temas de grande repercussão nacional, como o que envolveu o italiano Cesare Battisti e o médium João de Deus. A frieza da área, diz ele, nunca o impediu de enxergar cada caso com humanidade. "É imprescindível a qualquer das funções do processo judicial o lado da empatia e de acreditar no ser humano", diz Nefi, que foi bastante elogiado pelos pares quando se aposentou do STJ, em março deste ano. Para ele, o Supremo Tribunal Federal (STF) acabou se debruçando, nos últimos anos, em questões que deveriam ter sido analisadas pelo Congresso Nacional. "Tenho receio de qualquer ação sem limites ou controles", diz. Nefi realmente se preocupa muito com os limites que por vezes parecem faltar, como é no caso do instrumento da Colaboração Premiada. "Se de um lado foi um avanço enorme em eficiência, ela representou um perigo de retrocesso nas garantias individuais." Seguindo em Brasília, desta vez com o recém-criado escritório de advocacia, Nefi concedeu entrevista a Encontro. Falou sobre o aprendizado na magistratura, temas espinhosos como a prisão em segunda instância e sobre o avanço da tecnologia nos processos judiciais.

  • Quem é: Nefi Cordeiro, 58 anos

  • Origem: Curitiba (PR)

  • Formação: Bacharel em Direito (1988), pela Faculdade de Direito de Curitiba. Mestre em Direito Público (1995) pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Direito das Relações Sociais (2000), também pela Universidade Federal do Paraná. Bacharel em Engenharia Civil (1998) pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Graduação em Oficial Militar, em 1983, na Academia Policial Militar do Guatupê. Curso de Mediação, em 2009, pela Universidade McGill, do Canadá

  • Carreira: Foi ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de 2014 a 2021, membro da 3ª Seção e presidente da 6ª Turma. Ex-promotor de Justiça (1989); ex-juiz de Direito (1990); juiz federal (1992) e desembargador federal de 2002 a 2014

Encontro - O senhor se aposentou no STJ depois de 7 anos e mais de 30 anos de atividade jurídica. Qual foi o grande aprendizado desse período?

Nefi Cordeiro - Foi a humanidade. É imprescindível a qualquer das funções do processo judicial o lado da empatia e de acreditar no ser humano. E isso vale para todas as funções do Direito. Não dá para imaginar um promotor que seja apenas um acusador cego ou um advogado que não sofra junto com o seu cliente. Mesmo um juiz que precisa por função ser imparcial, isso não o afasta da humanização. Do contrário, ele acaba virando um juiz robô, um repetidor de precedentes, sem perceber que no caso concreto, nas circunstâncias de cada processo, a Justiça se altera.

Essa é a grande marca que o senhor leva agora para a advocacia?

Sim. É a marca da exigência da humanidade no exercício profissional. Preocupa-me quem trata o processo como número, como meta, o que acaba implicando em uma menor justiça. É claro que a maior chaga da justiça brasileira é a demora, mas não consigo aceitar um juiz que trata vidas como objetos a serem examinados sem o lado da humanidade. Justiça só se faz com humanidade em todas as áreas do Direito.

Como foi ser Ministro do STJ, que acaba lidando com casos de grande repercussão nacional? Como foram os casos que envolveram o italiano Cesare Battisti e do médium João de Deus. Há alguma diferença?

Sim. Eu fui juiz de carreira. Estou acostumado a atuar no processo em primeiro grau, como desembargador e depois como ministro. E o que muda é a repercussão e a pressão social que recebem esses julgadores. Claro que quanto mais alto o cargo, maior a exigência para que o juiz atue sem medo das pressões e reações sociais. Impossível acreditar que se faça justiça respondendo a desejos instantâneos da população. É natural que a vítima e até a sociedade queiram uma resposta imediata. Mas a nossa Constituição estabelece a presunção de inocência e precisamos aplicá-la no dia a dia. Nunca permiti, e sei que isso está na vontade de todos os ministros, que a pressão possa mudar julgamentos.

"Impossível acreditar que se faça justiça respondendo a desejos instantâneos da população" (foto: Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/D.A Press)
O instrumento da Delação Premiada, que ganhou grande visibilidade no passado recente do país, virou céu e depois inferno, pois muitos juristas começaram a questionar sua eficácia. Qual sua avaliação? Foi um avanço ou retrocesso?

A Colaboração Premiada é o maior meio de obtenção de provas que conhecemos até o momento em nosso país. Não há outra forma de investigar tão eficiente. A operação Lava Jato foi exemplo disso. A eficiência foi inconteste. Tivemos processos contra pessoas de destaque político e empresarial. Tivemos muitas condenações também. Só que tudo que é eficiente precisa ter limites. A Colaboração Premiada foi aos poucos criando esses limites, esses controles, que ainda são parciais. Então, se de um lado ela foi um avanço enorme em eficiência, ela representou um perigo enorme de retrocesso nas garantias individuais.

Pode dar um exemplo?

Com ameaças de invenção de penas, de ritos, dúvidas sobre necessidade de prisões que poderiam indiretamente servir como forma de tortura para obtenção de colaboração. O Estado só pode agir dentro da lei, por melhores que sejam as intenções do agente público. Por mais tentadora que seja a ideia de só ver o lado positivo da Colaboração Premiada, temos sempre que ter como norte a importância das garantias individuais. Do contrário, a tendência vai ser usar essas provas sem limite, o que pode servir para perseguir nossos inimigos, pessoas ou partidos políticos que não gostamos. Todos nós precisamos desses controles.

E teve um caso em que o senhor votou pela revogação da prisão de duas pessoas que teriam descumprido a Delação Premiada.

Sim. Lembro de um caso em que o juiz prendeu porque o réu deixou de colaborar. Aí fica evidenciado a intenção de usar a prisão como forma de pressionar para a colaboração. E isso não é permitido em nosso sistema. Por isso, a preocupação com as garantias individuais.

A discussão sobre a condenação em segunda instância segue viva. O que o senhor pensa a respeito?

Claro que será mais eficiente uma prisão após condenação e apelação, porque ela é muito mais rápida. Mas o grande problema é que a nossa Constituição estabelece a presunção de inocência e muitos casos acontecem de a pena vir a ser reduzida, sim. E claro, em menor número, de as pessoas serem até absolvidas no STJ e STF. Essa é a grande diferença para o processo civil. No processo civil, podemos antecipar a execução porque é dinheiro. Se eu exijo dinheiro de alguém, e no recurso final dizem que eu não tenho razão, eu devolvo o dinheiro. Mas ninguém repara um dia de cadeia. As nossas cadeias são uma realidade de abuso na primeira noite, seja ele físico ou moral. E isso é irreparável. Processo penal não admite execução imediata da pena porque é impossível reparar os danos causados por erro judiciário. O que precisamos pensar é em prazos mais curtos. O grande problema que vejo não é prender só depois do processo, é na demora do processo. Se ele demorasse quatro ou cinco anos talvez a sociedade não sentisse tanta impunidade.

E o argumento de que a não prisão em segunda instância favoreceria quem tem mais recursos financeiros?

Não é verdade. A maior parte dos casos de habeas corpus concedidos pelo STJ e STF é da Defensoria Pública. Portanto, os pobres, com a Defensoria Pública, também chegam em instâncias superiores e podem mudar as suas sentenças.

Nos últimos anos, talvez de forma até inédita no país, o poder judiciário passou a ser mais demandado no ponto de vista político. Como o senhor enxerga essa questão da chamada judicialização na política, bastante criticada por alguns?

Como professor e advogado digo, realmente, que o Supremo tem decisões inovadoras, que no meio judiciário costumamos chamar de ativismo judicial. São criações, inovações muitas vezes por omissões dos demais poderes, mas isso ocorre porque tem um reclamo para isso. O Tribunal não age por ofício. Há sempre uma provocação. Agora, pessoalmente, tenho receio de qualquer ação sem limites ou controles. E o STF não tem limite ou controle, ou melhor, tem limite e controle que a Constituição estabelece. Acontece que esse limite é interpretado pelo próprio STF. Por isso, que o Supremo não se submete ao Conselho Nacional de Justiça, que faz o controle administrativo do judiciário brasileiro. Há uma resistência do STF a rever os atos dos colegas. Há 10 ou 15 anos, nosso STF jamais tomaria medidas de ativismo como estamos vendo. Se o STF fosse discutir construção de presídios, o ministro iria dizer que isso é uma opção do administrador. Então, está aumentando o número e amplitude de decisões do STF que invadem competências legislativas e executivas. Mas confesso que tenho gostado de todas as decisões de ativismo. Sou favorável à união homoafetiva, por exemplo. No entanto, me parece que isso devesse sair do Congresso Nacional, apesar da dificuldade de essa decisão sair por lá.

O "Pacote Anticrime", na sua avaliação, teve mais pontos positivos ou negativos?

No tema da Colaboração Premiada, já tivemos alguns avanços. Porque antes o promotor podia negar uma oferta de acordo sem dizer o porquê. Hoje, a lei exige que ele se fundamente. Outros avanços ainda estão aguardando parecer, como o do Juiz de Garantias, que é uma medida de controle. E há medidas da lei anticrime que vieram para agravar o tratamento de criminosos do crime organizado.

A pandemia acelerou a incorporação das novas tecnologias em várias frentes de trabalho. Como está sendo no judiciário?

A tecnologia facilita o acesso. No STJ, por exemplo, há alguns anos se discutia a possibilidade de sustentação oral à distância, mas nunca se aprovava. Com a pandemia, o STJ foi forçado a aceitar. É uma mudança muito grande, que provavelmente vai ser mantida na sequência, quando tivermos a possibilidade da sustentação oral presencial. Ainda quando eu era ministro, advogados comentavam como era maravilhoso poderem despachar comigo à distância, pois antes tinham de pegar avião de São Paulo a Brasília. As comunicações também foram facilitadas. Mas ainda temos muita burocracia. O oficial de justiça tem de entregar uma cartinha para a pessoa chegar à justiça, mesmo com tantos meios mais rápidos.

"Processo penal não admite execução imediata da pena porque é impossível reparar os danos causados por erro judiciário" (foto: Raimundo Sampaio/Esp. Encontro/D.A Press)
Há um lado negativo disso?

O lado negativo é que acabamos perdendo a humanidade, o olho no olho. É cada vez mais frequente vermos as pessoas captando a emoção pelo meio eletrônico, mas não é a mesma coisa. Devemos manter a possibilidade de audiência on-line, mas quando o réu puder estar presente, devemos priorizar o presencial.

A possibilidade de obter provas por meio dessas plataformas digitais, como o WhatsApp, também passou a ser discutida.

Sim. E estamos vivenciando mais fortemente agora não só por causa da pandemia. A realidade tecnológica está aí. Por exemplo, a geolocalização. No caso Marielle Franco foi autorizado esse tipo de prova. Foi autorizado ainda que se fornecesse a relação das pessoas que acessaram o nome Marielle Franco no Google. E em poucos meses depois vimos pedidos semelhantes para outros casos de crimes no Norte e Nordeste do país.  Então, tudo que é eficiente tende ao exagero. Claro que em alguns casos esse recurso pode ser justificado, mas tende a virar rotina. Daqui a pouco vamos estar discutindo um estelionato e vamos começar a pedir quais eram os celulares que estavam naquela região onde foi feito o telefonema. É perigoso quando permitimos essa falta de controle. O grande perigo é o agente público usar mal essa arma para atingir um inimigo. Uma lei deve dizer até quando e por quanto tempo e em quais condições podem ser usados a geolocalização, o exame de DNA, o reconhecimento facial, a captação de som e a imagem à distância, por exemplo.

Qual a sua opinião sobre o uso da inteligência artificial no judiciário? O senhor recebeu, assim que assumiu o cargo de ministro, 15 mil processos para serem analisados. E deixou o gabinete zerado. Usou desse recurso?

Gosto de gestão e de colocar as pessoas onde elas rendem melhor para tentar organizar o fluxo de trabalho. Em todos os lugares onde trabalhei no judiciário foi assim. Eu começo organizando os temas mais urgentes. Comecei no STJ, por exemplo, com processos de prisão preventiva. Quando zerei esse tema, parti para o próximo. Daí consegui deixar o trabalho sem pendências. Tudo com gestão. Não cheguei a usar a inteligência artificial, que é um caminho muito possível e que tribunais já estão usando.

Por que seguir carreira no Direito?

Fiz engenharia, pois era um sonho que realizei, mas depois vi que meu caminho era para o Direito mesmo. E o escolhi até por causa da humanidade. Desde o início tive essa preocupação e me realizei em todas as áreas do Direito. Fui muito feliz como magistrado, tentando fazer o justo e de modo célere para todas as pessoas. Trabalhava com a porta aberta. Depois de 40 anos de serviço público, senti que era a hora de seguir para outro desafio, que é a advocacia. Mas seguindo com humanidade também, sem tratar os clientes como meros objetos de exames ou teses. São pessoas que merecem atenção e respeito. Não vou abandonar a humanidade e acho importantíssimo manter isso.

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