Publicidade

Estado de Minas SAÚDE MENTAL

Psicanalista explica o que é gaslighting infantil

Atitudes diárias praticadas por alguns pais, até mesmo de forma inconsciente, podem alterar ou invalidar as emoções e percepções das crianças


postado em 24/06/2022 13:34

(foto: Paulo Márcio/Encontro)
(foto: Paulo Márcio/Encontro)
Durante uma das atividades realizadas na etapa final do "BBB 22", da Rede Globo, um dos participantes, o ator e cantor Arthur Aguiar,  foi acusado de praticar "gaslighting" contra outra integrante do grupo. O assunto, como quase tudo o que envolve o programa, viralizou na internet. A polêmica não impediu que ele se tornasse campeão da edição, mas trouxe à tona um artifício amplamente praticado, mesmo que nem sempre de forma intencional. O termo - que surgiu por causa de uma peça de teatro inglesa de 1938, "Gas Light", do romancista e dramaturgo Patrick Hamilton - se refere a um tipo de abuso psicológico no qual a manipulação é a principal arma. Na trama, um marido se vale de vários artifícios para que sua mulher acredite que perdeu a sanidade mental, fazendo-a duvidar do que via, sentia ou pensava e a deixando completamente desacreditada. Entre os truques utilizados, o homem diminuía, diariamente, o gás que fornecia luz à casa e quando a esposa reclamava, a chamava de louca, já que a iluminação "estaria completamente normal".

Seja  na ficção seja na vida real, o que a princípio era relacionado apenas à relação entre homem e mulher se estendeu a outros vínculos sociais, incluindo familiares, amigos, colegas de trabalho e, até mesmo, pais e filhos.

Descobriu-se, então,  que muitas vezes as emoções e percepções infantis são alteradas ou invalidadas, por causa da atitude de adultos que as deixam confusas e inseguras. A grande dúvida, no entanto, seria como identificar a linha tênue entre manipulação e cuidado. Controle e proteção. A psicanalista Ana Boczar, membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, ressalta que o que se passa na estruturação de uma criança depende da interpretação gradativa que a mesma fará daquilo que é experienciado, vivido e ouvido por parte do que se  denomina um "outro experimentado". "Esse outro é um adulto, que a partir de sua própria história oferecerá palavras, intervenções, ações, que refletirão diretamente na educação dessa criança", diz. Encontro conversou com Ana sobre esse assunto:

1) O termo gaslighting é usado para descrever situações que envolvem adultos quando um se utiliza de artifícios para fazer o outro ser desacreditado ou confundir as próprias emoções.  Seria uma forma sutil de violência em que, geralmente, os homens manipulam as mulheres. Mas o que isso tem a ver com as crianças?

Utilizado com uma certa amplitude pela psicologia, o termo "gaslighting" não é uma expressão que faça parte do que se denomina "psicopatologia psicanalítica", por ser uma expressão cooptada do "imaginário" através da arte. No entanto, vale a pena perguntar o que a psicanálise tem a dizer sobre esse modo patológico de relação. Em se tratando de crianças, o que se passa em sua estruturação depende da interpretação gradativa que a mesma fará daquilo que é experienciado, vivido e ouvido por parte do que chamamos um "outro experimentado". Esse outro é um adulto, que a partir de sua própria história, oferecerá palavras, intervenções, ações, que refletirão diretamente em sua educação e formação, influenciando em sua visão de mundo.

2) É comum uma criança cair e se machucar e, na melhor das intenções, alguns pais dizerem que "não foi nada", ou "não doeu". No entanto, a criança realmente está sofrendo. Seria uma forma de manipulação?

É necessário destacar que aquilo que na expressão "gaslighting " é intencional, não necessariamente se dá da mesma forma na relação entre pais e filhos. A manipulação psicológica de crianças pelos pais não ocorre usualmente, a não ser em situações específicas em que um dos pais, ou ambos, apresentem uma patologia mais grave e a intenção consciente de manipular uma criança. Se isso ocorrer, é indício da necessidade de uma intervenção psicoterápica.

3) Por outro lado, há situações mais graves em que os pais batem na criança e utilizam expressões como: "foi para o seu bem" ou "a culpa foi sua". De modo a transferir a responsabilidade de seus próprios atos e descontrole para os filhos. Nestes casos, configura-se o gaslighting?

Nem sempre há intenção, mas não deixa de ser prejudicial. A tentativa dos pais de reparar certas atitudes inadequadas dos filhos com punições físicas, de forma geral, não é indicada. É necessário que esse ser em constituição seja orientado através do diálogo, sobre as possíveis formas de expressão e de acordo com cada situação. Essa pode ser uma tarefa difícil para ambas as partes, mas se trata da mais eficaz. Só através da palavra que permite alguma construção e elaboração, é que a criança poderá se apropriar de seu universo afetivo interno.

"Há uma espécie de contexto histórico que marca a posição de cada adulto quando se trata da educação dos filhos, definindo normas e padrões. Mas o fato é que nunca teremos total controle do que se passa ao educar uma criança"

Ana Boczar, psicanalista

4) Mesmo quando não há intenção, quais as consequências desse tipo de atitude para as crianças?

São atitudes que levam à perda de confiança em si mesmo e à baixa auto-estima. Por isso, o treino de uma escuta  atenta dos pais aos "barulhos" advindos de seus filhos, não pode se dar na lógica policial, como ocorre no cinema. É preciso seguir a lógica da travessia e das construções, em que ambas as partes dessa trama têm espaço, sendo ouvidos e respeitados.

5) Quando um ente querido morre e a família não permite que a criança vivencie aquela realidade de luto e sofrimento, seria também um tipo de manipulação psicológica?

Encarar a  finitude é um dos maiores desafios do ser humano. Lidar com a morte seria uma forma da criança se familiarizar com os seus próprios limites e com os daqueles que ama. Os pais devem estar sempre atentos para auxiliar na construção de um enfrentamento, ainda que gradativo, pela criança.

6) Mostrar a realidade às crianças seria uma forma de torná-las mais preparadas para enfrentar as dificuldades da vida?

Assim como nós, adultos, as crianças não podem viver em uma bolha, completa, perfeita, posto que lidarão a todo o tempo com a frustração e a incompletude, o que nem sempre será fácil. O pressuposto de que a vida sempre se apresenta em aberto para a escrita de desenlaces da história é a melhor perspectiva para todos nós e para o que deixamos como herança para as próximas gerações. Assim, caminhamos melhor para o enfrentamento da vida cotidiana, que não se apresenta acabada para nenhum de nós.

7) Os adultos têm mesmo o direito de decidir como a criança deve ou não se sentir?

Existem alguns aspectos desconstrutivos na relação entre pais e filhos que precisam ser abordados. Entre eles, a super idealização de ideais que se corporificam em exigências supra humanas para com as crianças. A crítica radical às suas qualidades, levando-as à desmotivação. A dificuldade em lidar com os erros dos filhos. São pontos delicados e que frequentemente sequer são percebidos com clareza pelos que ocupam  o papel de educadores.

"Assim como nós, adultos, as crianças não podem viver em uma bolha, completa, perfeita, posto que lidarão a todo o tempo com a frustração e a incompletude, o que nem sempre será fácil"

Ana Boczar, psicanalista

8) Quais os principais sintomas de que a criança precisa de ajuda?

As crianças dão sinais de que algo não vai bem em seu mundo interno. Param de brincar, apresentam alterações importantes de sono, desenvolvem medos persistentes e inexplicáveis, declinam de forma significativa no desenvolvimento escolar, sofrem alterações de apetite e, até mesmo, apresentam sintomas que apontam o corpo como depositário de um conflito emocional, não falado, não enfrentado.

9) Qual seria a melhor forma de educar e proteger a criança sem invalidar os seus sentimentos?

Alguns aspectos se tornam condição "sine qua non" para o desenvolvimento da criança. O incentivo à autonomia em tarefas cotidianas, o confronto gradativo com conflitos advindos da realidade, a liberdade para viver e expressar seus sentimentos, bem como o incentivo à construção de respostas aos seus próprios desafios. É importante ressaltar que todos os aspectos citados necessitam de um entorno que apresente parâmetros, regras estabelecidas pelos pais, que são uma forma de ajudar a criança a organizar o seu universo interno.

10) Muitas vezes, na ânsia de proteger os filhos e de não vê-los sofrer, os pais acabam cometendo erros. Isso faz parte do processo?

Há uma espécie de contexto histórico que marca a posição de cada adulto quando se trata da educação dos filhos, definindo normas e padrões. Mas o fato é que a proliferação de artigos, discussões e produção literária sobre o tema só nos confirma a impossibilidade de termos total controle do que se passa ao educar uma criança. Certamente, existem parâmetros nessa relação, mas eles só podem ser construídos na história dos pais junto ao pequeno ser que está em construção.

Os comentários não representam a opinião da revista e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação

Publicidade