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Estado de Minas ENTREVISTA

Psicanalista fala sobre características de relacionamentos tóxicos

Além de poder resultar em violência doméstica, relações abusivas podem estar ligadas à Síndrome de Borderline


postado em 24/07/2022 22:28 / atualizado em 25/07/2022 13:07

(foto: Arquivo pessoal)
(foto: Arquivo pessoal)
Uma das maiores batalhas judiciais da atualidade, acompanhada não só por autoridades e testemunhas, mas globalmente discutida e analisada, trouxe à tona as trágicas consequências de um relacionamento tóxico e abusivo - para ambas as partes. Desta vez, o ator Johnny Depp e sua ex-mulher, a atriz Amber Heard, protagonizaram os piores papéis de suas vidas, disputando milhões de dólares em um processo de difamação e violência doméstica. Para os especialistas, em uma relação tóxica e abusiva não existem vencedores. Pior do que o prejuízo financeiro - Amber foi condenada a indenizar o ex marido em 10,35 milhões de dólares por acusá-lo de praticar violência doméstica sem a devida comprovação, enquanto ele deve indenizá-la em 2 milhões%u2006 de dólares por difamação - é a devastação provocada pelos danos físicos, morais e psicológicos sofridos.

Se neste caso não houve inocentes, já que a violência de um não anula a violência do outro - Amber foi acusada de praticar violência doméstica contra o ex marido - a tragédia trouxe à tona o fato de que tanto mulheres quanto homens podem ser vítimas em um relacionamento abusivo. Para além da análise simplista que aponta sempre o lado mais forte fisicamente como agressor, é preciso considerar o ser humano em toda a sua complexidade. "Embora o ser humano se estruture a partir de sua compleição física, já há muito não nos definimos apenas pela condição biológica, nos percebendo como seres racionais, sociais e emocionais extremamente complexos", diz a psicanalista Sandra Bulhões Cecilio, com especialização em ciências e valores humanos. Ao enxergar a violência como parte intrínseca de cada indivíduo, considerando todas as suas variáveis, torna-se mais fácil compreender que tão atrozes quanto a violência física, são a violência moral e a psíquica, que se apresentam com teor mais sofisticado e maior dificuldade de comprovação. "A força emocional leva pais a serem subjugados por seus filhos. Parceiros a serem subjugados por seus sentimentos. São as experiências emocionais que nos fortalecem à medida que aprendemos a lidar com as frustrações." A chamada violência de gênero se define como qualquer tipo de agressão física, psicológica, sexual ou simbólica contra alguém em situação de vulnerabilidade devido a sua identidade de gênero ou orientação sexual. Diante do isolamento social imposto pela pandemia mundial, os casos de violência doméstica cresceram exponencialmente, e não há como negar que a mulher seguiu sendo a principal vítima. Contudo, estudos apontaram um movimento reverso, com um crescimento no número de denúncias feitas por homens contra suas parceiras, relatando agressões como insulto, ameaça, ridicularização e, até mesmo, ataques físicos, personificados por tapas, socos, beliscões, arremessos de facas, tesouras, panelas, entre outras agressões que além de colocar em risco a sua integridade física, também ferem a honra. Mesmo que no Brasil culturalmente o tema seja tido como até "engraçado", relatado em tom de galhofa em músicas e na dramaturgia, a violência contra os homens não pode ser normalizada e, muito menos, menosprezada. Violência gera violência.

1) É certo que existe um padrão social de violência contra as mulheres, historicamente vítimas de abusos de todas as ordens  praticados por homens. Contudo, já foi comprovado que os homens também podem ser vítimas de um relacionamento abusivo. Em sua opinião, por que a sociedade ainda nega essa possibilidade?

A condição humana primitiva é animal. Na lei da selva - seja na floresta ou nos lares - vence o mais forte: o tigre come o alce, o gato come o rato. Tendemos a manter o olhar nesta diretriz de que o mais forte pode mais. O adulto subjuga a criança, o corpo masculino, usualmente mais forte (hormonalmente), usa e abusa do feminino. No entanto, embora o ser humano se estruture a partir de sua compleição física, já há muito nos definimos para além da condição biológica, nos percebendo como seres racionais, sociais e emocionais extremamente complexos. Tal complexidade define e transforma a condição humana, assim como o olhar simplista e habitual do mais forte como agressor.

2) Seria correto afirmar que o relacionamento abusivo e a violência doméstica independem de gênero, e tanto homens quanto mulheres podem ser vítimas?

É preciso olhar situações tão sofridas por mais de um ângulo para enxergar a violência como parte de todo ser humano. A agressividade, como forma de sobrevivência, existe e é uma característica necessária a todos os animais. Já em sua forma violenta e abusiva, vem acompanhada da onipotência humana, da exigência de ser dono de objetos, espaços, ideias e pessoas. Por esse ângulo ela esconde a dependência, o medo, a culpa e tantos outros aspectos da nossa fragilidade. Todos, independentemente de sexo, precisamos da agressividade como força de vida, ao mesmo tempo em que também é preciso lutar contra a agressividade possesiva e abusiva.

3) Considerando que em todos os relacionamentos entre casais existem conflitos, como identificar um possível relacionamento tóxico e abusivo?

Somos seres únicos, portanto diferentes uns dos outros. Esta é uma grande riqueza humana. O encontro com o diferente nos acrescenta, mas também acende a luzinha de perigo, pois junto da admiração vem o desejo de posse, o ciúme, a inveja, a destrutividade. Isto acontece na escola, no trabalho, com amigos. Sabemos ainda que não há conflito com o desconhecido, o indiferente, mas com aquele que mexe com nossas emoções. Buscando identificar o grau de toxicidade podemos pensar nas relações íntimas como um jardim a ser cultivado e que por conter pragas, necessita de podas. Identificamos um relacionamento abusivo quando não se vê mais o verde, quando o terreno vira deserto, concreto ou campo de batalha.

"Embora o ser humano se estruture a partir de sua compleição física, já há muito nos definimos para além da condição biológica, nos percebendo como seres racionais, sociais e emocionais extremamente complexos"

Sandra Bulhões, psicanalista

4) Na maioria dos casos, as tentativas de minimizar o parceiro trazendo à tona suas piores qualidades e, ao mesmo tempo, compensá-lo com carinho e até presentes são comuns neste tipo de relacionamento. O que leva a tais atitudes?

Melanie Klein descreveu o funcionamento mental como oscilante entre duas posições. Numa posição mais primitiva os objetos são vistos de forma cindida: bons ou maus, amados ou odiados. O bebê que só aceita o colo da mãe quando está com fome é o mesmo que arranca os cabelos e até os olhos dela num ataque de desconforto. Ele descobre que a mãe que ele ama é a mesma que muitas vezes o frustra. Vamos aprendendo a lidar com a frustração ao entendermos que o ser que atacamos é o mesmo que nos encanta. Na posição cindida o ódio vai gerando sentimento patológico de perseguição (persecutoriedade), o ruim fica tão monstruoso que a pessoa se sente atacada, enquanto o objeto amado é idealizado. Fazemos isto também na política quando elegemos ídolos e não homens. São relações que se cristalizam em modelos primitivos, estruturadas na cisão: se me decepciona, destruo, se me encanta, endeuso.

5) Por que é comum observar a presença de pessoas dominadoras e com posturas autoritárias em relacionamentos abusivos?

O diagnóstico psicanalítico é de que pessoas extremamente autoritárias em sua estrutura possuem núcleos extremamente frágeis e infantis, carregando em sua essência o medo do outro, do abandono, da impotência. Pessoas dominadoras têm muito medo do vazio, medo do mundo, da vida e, por vezes, escondem isto com uma capa da arrogância. Relações saudáveis são estruturadas na convivência entre pessoas, com suas diferenças, logo exigem diálogo,  respeito, acolhimento e limite.

6) Até que ponto o vínculo emocional é saudável, para que não ganhe características de dependência?

Tartarugas quando nascem correm para o mar, mas o bebê humano nasce absolutamente dependente e leva um longo tempo para se constituir como indivíduo. Ele depende de uma mãe, que vive no seio de uma família, constituída dentro de uma sociedade. Winnicott diz que nascemos absolutamente dependentes e caminhamos em direção à independência sem, no entanto, nunca atingirmos a independência absoluta. Somos seres sociais, logo precisamos uns dos outros. São as experiências emocionais que nos fortalecem à medida que aprendemos a lidar com as frustrações. São elas que nos permitem criar alternativas, ampliar possibilidades, e aprender com a experiência, como diz o psicanalista Bion.  

7) Nos relacionamentos abusivos é comum o parceiro oprimido abrir mão de coisas que lhe são caras, perdendo a própria identidade e autoestima. Como a vítima pode reagir a isso?

Relacionamentos tóxicos não surgem de repente. Eles têm origem na história pessoal e familiar de cada um, enraizados no solo, são estruturais e não de fácil remoção. Reagir exige força, afeto e coragem. Uma das complicações destas relações é que costumeiramente elas isolam as pessoas, espalham medo e costumam gerar culpa. Mas a relação com outro é a janela para construir novas histórias: ouvir experiências, se dar o direito de falar, e criar laços de intimidade através de amigos e familiares. É necessário descobrir que há todo um espaço potencial de vida à nossa volta que pode ser aberto por alguém afetivo. A busca de ajuda profissional é sempre uma opção na construção de novos espaços.

"O diagnóstico psicanalítico é de que pessoas extremamente autoritárias em sua estrutura possuem núcleos extremamente frágeis e infantis, carregando em sua essência o medo do outro, do abandono, da impotência"

Sandra Bulhões, psicanalista

8) Somos habituados a entender como violência apenas a agressão física, contudo, como descrito na própria Lei Maria da Penha, podem ser considerados cinco tipos de violência: violência física, psíquica, moral, sexual e patrimonial. Como diferenciá-los?

A violência moral e a psíquica são as mais sofisticadas, com maior grau de complexidade e maior dificuldade de comprovação. A violência moral se concretiza através de calúnias, difamações e injúrias. Já a psicológica envolve condutas que causam danos emocionais, levam à diminuição da autoestima através de ameaças, humilhações, chantagem, ridicularização, causando prejuízo à saúde emocional.

9) Tendo em vista que a instabilidade emocional, com muitos altos e baixos, é uma das principais características em um relacionamento abusivo, é possível dizer que, em muitos casos, um dos parceiros pode possuir a chamada Síndrome de Borderline?

É possível, uma vez que o transtorno de personalidade borderline é caracterizado por instabilidade emocional, flutuações extremas de humor, impulsividade, visão distorcida de si e dos outros, além do medo do abandono e reações agressivas intensas. Costumam envolver comportamentos de risco como uso de drogas, automutilação e até mesmo tentativa de suicídio. Considerado um transtorno fronteiriço ou limítrofe entre uma personalidade neurótica e psicótica, o seu diagnóstico é bastante complexo.

10) Segundo os especialistas, existem quatro fases que se repetem em um relacionamento abusivo: 'tensão', onde começam as implicâncias. 'Incidente', quando ocorrem as brigas. 'Reconciliação', quando são feitas promessas de que as brigas não  voltarão a acontecer. E a última fase é a 'calmaria', onde o incidente é esquecido, como se nada tivesse acontecido. Como agir para sair desse ciclo vicioso?

Como todo vício, esse ciclo é composto por destrutividade, mas também por etapas prazeirosas, o que o torna ainda mais perigoso. Além de ser repetitivo, o ciclo vicioso costuma caminhar em direção a catástrofes, portanto é preciso rompê-lo. O rompimento não costuma ser imediato, mas se constitui numa mudança de direção. Romper com velhos hábitos é um exercício diário, exige perceber o que está à nossa frente com novos olhos, por outros ângulos da situação e, principalmente, que aprendamos a nos amar.

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