Estado de Minas IMUNIDADE

Herança da pandemia, a hiper-higienização ameaça equilíbrio do corpo

Médicos alertam que exagero na limpeza pode fragilizar a imunidade e aumentar riscos de doenças


postado em 18/08/2025 08:49 / atualizado em 18/08/2025 09:08

Nossa imunidade é constituída por meio da nossa relação com todas as bactérias, vírus, fungos e tudo o que compõe o ambiente em que vivemos, afirmam especialistas(foto: Freepik)
Nossa imunidade é constituída por meio da nossa relação com todas as bactérias, vírus, fungos e tudo o que compõe o ambiente em que vivemos, afirmam especialistas (foto: Freepik)
A fisioterapeuta Roberta Finelli Duarte, 44 anos, se lembra bem quando, ainda muito pequenina, andava de sapatinhos e meias pela casa desde a hora em que se levantava, em contraponto à irmã, Bruna, que vivia com os pés no chão. Ela se recorda ainda da avó materna correndo para passar um paninho na mesa para tirar farelos de biscoito: “Vou limpar logo antes que a Roberta o faça”. Sim, desde cedo a também empresária se preocupa demasiadamente com a limpeza. Comportamento que se exacerbou na pandemia de Covid-19, quando, em pleno isolamento, deu à luz a filha Eduarda, hoje com 4 anos.
 
A pandemia deixou como herança, não só para Roberta, mas para a população em geral uma preocupação maior com higienização, tanto do corpo como dos alimentos e do ambiente. No entanto, a busca frenética por assepsia que grande parte das pessoas manteve após a crise sanitária global tem preocupado médicos e cientistas. O motivo é que esse comportamento traz como consequência justamente efeitos opostos
ao que essas pessoas buscam: ficar livre de doenças.
 
Não é difícil se lembrar de um conhecido que exagera no uso de sabonetes antissépticos e no uso do álcool em gel, por exemplo, lavando as mãos e o corpo repetidas vezes. Ou mesmo aquele que gasta horas limpando a casa e segue ainda, nos dias atuais, passando álcool nas sacolas de compras e pede para o visitante tirar os sapatos antes de entrar em sua casa. Roberta é uma delas. Dona do Estúdio Prumo Pilates, que tem uma unidade no centro e outra no bairro Funcionários, ela ainda leva as mesmas preocupações e cuidados de casa para o trabalho.  
 
Porém, apesar de muitas pessoas se sentirem protegidas e aliviadas com hábitos extremos de higiene, elas se esquecem, ou simplesmente não sabem, que a imunidade é constituída por meio da nossa relação com todas as bactérias, vírus, fungos, enfim, tudo que compõe o ambiente, lembra a médica mineira Soraya Hissa, especializada em saúde mental. “Não adianta ficarmos totalmente protegidos dentro de uma bolha, porque, na hora que entrarmos em contato com determinados germes e bactérias, o efeito em nosso corpo será mais grave”, diz ela.
 
Antônio Carlos Moraes, gastroenterologista, defende que a hiper-higienização levou o número de casos de doenças infectocontagiosas a cair e de autoimunes a subir, como, por exemplo, a asma, a retocolite ulcerativa e a doença de Crohn (foto: Arquivo Pessoal)
Antônio Carlos Moraes, gastroenterologista, defende que a hiper-higienização levou o número de casos de doenças infectocontagiosas a cair e de autoimunes a subir, como, por exemplo, a asma, a retocolite ulcerativa e a doença de Crohn (foto: Arquivo Pessoal)
De fato, novos estudos têm alertado para a relação entre a hiper-higienização e a maior incidência de doenças autoimunes no mundo. “As doenças infectocontagiosas caíram e as autoimunes subiram, como, por exemplo, a retocolite ulcerativa e a doença de Crohn. Mas temos outras também, como a asma, a dermatite atópica, a artrite reumatoide, as alergias”, adverte o gastroenterologista Antônio Carlos Moraes, especializado em doenças autoimunes e diretor de Gastroenterologia da Rede D’Or e diretor científico da Federação Brasileira de Gastroenterologia. “O que estamos fazendo é destruindo a nossa microbiota, e isso cobrará um preço elevado da humanidade. Saúde é ausência de extremos. Precisamos encontrar o equilíbrio”, defende.
 
No estudo “The indoors microbiome and human health”, os cientistas Jack A. Gilbert & Erica M. Hartmann definem microbioma como “um ecossistema complexo de microrganismos influenciado por atividades humanas e fatores ambientais, que desempenha um papel fundamental na modulação de doenças infecciosas e no desenvolvimento saudável do sistema imunológico”. Nesse trabalho, eles fizeram uma revisão de vários estudos já publicados e alertam: um lugar sem micróbios não significa um lugar mais saudável para se viver.
 
“Avanços recentes na pesquisa sobre o microbioma lançam luz sobre esse sistema ecológico único, ressaltando a necessidade de abordagens inovadoras na criação de espaços de convivência que promovam a saúde”, afirmam na pesquisa, que foi publicada na revista científica “Nature”.
 
Quais os sinais de que estamos exagerando?
 
Na realidade, o lavar das mãos antes das refeições e quando se usa o toalete, além da limpeza do ambiente onde se vive, são e continuarão sendo hábitos recomendáveis, pondera Moraes. “É claro que devemos nos limpar, tomar banho, vivemos em um país quente. Devemos limpar a nossa casa. Mas precisamos buscar o equilíbrio. Afinal, saúde é ausência de extremos”.
 
O que ocorre é que a pandemia acentuou os transtornos relativos a excesso de limpeza, e isso é fato, afirma a médica e psicanalista Soraya Hissa. “Como eu atendi pessoas que sofreram, sofrem e ainda vão sofrer durante um bom tempo com medo obsessivo de se contaminar por doenças… Para quem já tinha diagnóstico de TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo), era uma visão do terror”, relata a especialista.
 
A empresária Roberta Finelli não tem nenhum desses diagnósticos. Mas reconhece que a situação gera ansiedade. “Eu não consigo, por exemplo, dormir se não estiver tudo limpo. Se vou comer, mas há algo sujo na cozinha, não dá. Então, eu vou arrumar primeiro para só depois sossegar, ficar sentada, vendo minha televisão, sabendo que está tudo limpinho. Na minha cabeça, funciona desse jeito”, afirma. No entanto, a relação com a filha Eduarda vem fazendo com que Roberta lute contra a frustração para permitir que a garotinha ande em casa descalça e brinque no parquinho à vontade. “Eu tenho que lidar com isso, aprender todo dia, mas não é uma coisa tranquila para mim”, conclui.
 
A empresária e fisioterapeuta Roberta Finelli ainda desinfecta todas as compras que chegam em casa com álcool e tira os sapatos antes de entrar em casa, mas luta contra a frustração para permitir que filha ande em casa descalça e brinque à vontade(foto: Bruna Finelli/Divulgação)
A empresária e fisioterapeuta Roberta Finelli ainda desinfecta todas as compras que chegam em casa com álcool e tira os sapatos antes de entrar em casa, mas luta contra a frustração para permitir que filha ande em casa descalça e brinque à vontade (foto: Bruna Finelli/Divulgação)
Ao contrário da empresária, que consegue seguir a vida normalmente, apesar do maior trabalho e preocupação por não permitir sinais de sujeira, há quem sofra além da conta. Há casos em que pessoas ficam presas nos pensamentos e nas imagens mentais obsessivas, numa espécie de ciclo. O sinal de alerta se acende quando esse comportamento se torna frequente, repetitivo e altamente individualizado: a pessoa sente que precisa limpar, organizar, contar em silêncio quantas vezes lavou, quantas vezes subiu e desceu uma escada, ou quantas vezes se contaminou ao tocar em algo. E, ao terminar esses rituais, vem um breve alívio”, explica a médica.
 
Segundo ela, esse comportamento compulsivo é uma tentativa de aliviar uma angústia interna intensa, mas acaba se tornando um sofrimento ainda maior. “É uma ‘assepsia mental’ que cobra um preço alto. Muitos choram, gritam, chegam a se agredir, a bater em si mesmos ou nas paredes. É uma situação realmente grave, e que precisa de acolhimento e tratamento especializado.”
 
Sinais de que algo realmente não vai bem podem ser percebidos nas mãos e na pele de uma forma geral. “As mãos costumam ficar tão ressecadas que chegam a sangrar”, diz Soraya Hissa. E, desta forma, acrescenta o gastroenterologista Moraes, destroem a microbiota da pele, uma das três que compõem o organismo humano. Ele reforça que a alteração do microbioma cutâneo, intestinal e das mucosas pode estar associada ao aumento da incidência de doenças inflamatórias, autoimunes e metabólicas, como asma, dermatite atópica e obesidade, demonstrando que a diversidade microbiana não é apenas tolerada, mas fundamental para a saúde humana.
 
Corpo humano tem 3 kg de bactérias
 
Passar uma “vassoura microscópica” imaginária para varrer desde a boca até todo tubo digestivo, incluindo esôfago, estômago, intestino delgado, intestino grosso e ânus, leva ao impressionante volume de 3kg de bactérias - algo em torno de 39 milhões de microorganismos vivos, de acordo com Moraes. Para se ter uma ideia, o total de células humanas é estimado em aproximadamente 30 trilhões.
 
“Você pode pensar que leva todo dia de carona consigo uma bolsa 3 kg de bactérias. E elas tão lutando, vivas, para te defender, criando um ambiente de defesa. Nós não podemos agredi-las em excesso, elas precisam existir”, afirma o especialista. Nesse sentido, explica, a hiper-higienização pode comprometer significativamente os biomas humanos ao reduzir a diversidade microbiana benéfica essencial para a homeostase do organismo.
 
A remoção constante desses microrganismos enfraquece a função de barreira das comunidades simbióticas, facilitando a colonização por patógenos oportunistas e desregulando o sistema imunológico, especialmente durante a infância, quando a exposição microbiana é crucial para o desenvolvimento imunológico adequado.
 
Ambiente
 
Em relação à casa, o fenômeno é parecido. O local é composto pelos microrganismos trazidos por todos os moradores — incluindo os animais de estimação, insetos como baratas e até pelas partículas vindas do solo, da água e do ar.
 
Esses elementos interagem entre si e com o ambiente interno, influenciando diretamente a saúde de quem vive ali. Segundo os especialistas, o uso excessivo de produtos antimicrobianos, buscando uma esterilidade perfeita impossível de ser alcançada, pode acabar com o equilíbrio de um microbioma caseiro.
 
Sinais de exagero na preocupação com limpeza
 
No pós-pandemia, muitos hábitos de higiene adquiridos ou intensificados durante a Covid-19 se mantiveram de forma excessiva, e alguns sinais de exagero incluem:
  • Uso constante de álcool em gel mesmo em casa ou após atividades sem risco significativo de contaminação;
  • Lavagens excessivas das mãos (muito frequentes ou por tempo exagerado), que podem causar ressecamento, rachaduras e dermatites; 
  • Desinfecção obsessiva de superfícies e objetos pessoais, como roupas, sapatos ou embalagens de alimentos, mesmo quando o risco de contaminação é mínimo;
  • Evitação excessiva do contato com o ambiente natural, como impedir crianças de brincar na terra ou evitar animais domésticos por medo de “sujeira”;
  • Resistência a ambientes públicos ou sociais por medo de germes, mesmo com baixos índices de transmissão ou com vacinação em dia.

Os biomas do nosso corpo (e sua importância para a saúde)

No corpo humano, temos três principais biomas microbianos:
 
  • Bioma da pele: abriga bactérias, fungos e vírus que protegem contra patógenos e ajudam na cicatrização. Varia conforme a região (seca, oleosa ou úmida).
  • Bioma intestinal (ou microbioma intestinal): o mais estudado, influencia a digestão, o sistema imunológico, a produção de vitaminas e até o humor. É composto por trilhões de microrganismos.
  • Bioma das mucosas (oral, nasal, vaginal etc.): inclui microrganismos que atuam como barreira contra infecções, ajudam a manter o pH equilibrado e interagem com o sistema imune.




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