Estado de Minas DIREITO ANIMAL

Guarda compartilhada de pets avança no debate jurídico no Brasil

Reforma do Código Civil, em tramitação no Congresso, pode redefinir status jurídico dos animais, reconhecendo vínculos afetivos e a senciência dos bichos


postado em 29/12/2025 08:43 / atualizado em 29/12/2025 09:31

Clara Faitin Cota e o ex-marido têm a guarda compartilhada dos pets Babu e Leroy, ambos sem raça definida. A cada 15 dias os cães ficam na casa de um dos tutores:
Clara Faitin Cota e o ex-marido têm a guarda compartilhada dos pets Babu e Leroy, ambos sem raça definida. A cada 15 dias os cães ficam na casa de um dos tutores: "Chegamos à conclusão de que não fazia sentido separá-los" (foto: Pádua de Carvalho)
Em um tempo em que os vínculos com os animais de estimação são cada vez mais profundos e reconhecidos socialmente, histórias como a de Clara Faitin Cota, produtora audiovisual mineira de 38 anos, são cada vez mais comuns. Morando em São Paulo há cerca de uma década, Clara viveu por sete anos com seu hoje ex-companheiro, Lucas Mattos. Durante a pandemia, o casal adotou Babu, de 5 anos, um vira-lata carinhoso. Pouco tempo depois, deram um lar ao Leroy, de 4, também sem raça definida, encontrado no estacionamento de uma loja de material de construção. “Eles são meus amores. Dois vira-latinhas lindos, perfeitos”, conta ela. A relação do casal chegou ao fim no ano passado, mas o laço com os pets permaneceu inabalável. Segundo Clara, o mais importante era manter os dois cães juntos. “Chegamos à  conclusão de que não fazia sentido separá-los.”
 
Mesmo morando em casas separadas, Clara e Lucas construíram um modelo de convivência que prioriza o bem-estar dos animais e o respeito mútuo. Ele se mudou para uma casa próxima à dela, e os dois passaram a ter a guarda compartilhada dos animais. Assim, Babu e Leroy passam 15 dias na casa de cada um dos tutores. Quando um precisa viajar, a responsabilidade pelo cuidado fica com o outro. Caso ambos estejam ausentes, os pets ficam hospedados em uma creche especializada. Além do tempo, as despesas também são divididas igualmente: ração, veterinário, banho e cuidados diversos. 
 
Membro da comissão de juristas responsável pela elaboração do anteprojeto da reforma do Código Civil, Vicente de Paula Ataíde Júnior avalia que esse é um avanço importante, porque rompe com a ideia de que os animais são meramente bens móveis:
Membro da comissão de juristas responsável pela elaboração do anteprojeto da reforma do Código Civil, Vicente de Paula Ataíde Júnior avalia que esse é um avanço importante, porque rompe com a ideia de que os animais são meramente bens móveis: "Mas propomos que eles sejam enquadrados como entes despersonificados, como o nascituro, e como tal, sujeitos de direito" (foto: Grasiela Piasson)
Embora o Brasil ainda não tenha uma legislação consolidada sobre guarda compartilhada de animais em separações, casos como o de Clara e Lucas mostram que o bom senso é o melhor caminho. O problema ocorre mesmo é quando o divórcio vai parar na Justiça. A boa notícia é que os chamados Direitos Animais têm sido levado muito a sério no Brasil, tanto que a reforma do Código Civil, atualmente em tramitação no Congresso Nacional, promete avanços significativos na área. Membro da comissão de juristas responsável pela elaboração do anteprojeto da reforma, o juiz federal e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Vicente de Paula Ataíde Júnior, referência nacional no tema, explica os impactos dessa proposta. “O reconhecimento da senciência animal e da afetividade entre humanos e bichos precisa estar refletido no ordenamento jurídico”, afirma o magistrado.
 
Segundo ele, o Projeto de Lei 4/2025, previsto na reforma do Código Civil, inclui modificações em relação à natureza jurídica dos animais, sendo três temas centrais: o “Reconhecimento do vínculo afetivo”, por meio de um artigo que passaria a reconhecer o afeto entre humanos e animais como parte dos direitos da personalidade humana; a constituição da “Família multiespécie", que passaria a prever a guarda compartilhada, o direito de visitas e a divisão de despesas com os animais após a separação conjugal; e o  reconhecimento dos “Animais como seres vivos sencientes”, sujeitos a um regime jurídico próprio, a ser regulamentado por lei federal. A proposta de reforma abrange todos os animais e não apenas cães e gatos. “É um avanço importante porque rompe com a ideia de que os animais são meramente bens móveis”, explica Vicente.
 
Desafios e contradições
 
Apesar do progresso, especialistas apontam dois pontos problemáticos no texto. O primeiro é a localização considerada inadequada no código, tendo em vista que exatamente o artigo que trata os animais como seres vivos sencientes está inserido no Livro dos Bens, o que ainda sugere que os bichos são propriedade. E o segundo ponto é o  regime jurídico subsidiário, ou seja,  até que um Estatuto dos Animais seja aprovado, os animais seguirão sujeitos à legislação dos bens. Para Vicente, isso enfraquece a proposta. “Por isso, propus que os animais fossem enquadrados como entes despersonificados, como o nascituro, sujeito de direitos, ainda que sem personalidade jurídica”, argumenta.
 
A promotora de Justiça do MPMG Monique Mosca Gonçalves lembra que a Constituição já garante proteção mais robusta aos animais:
A promotora de Justiça do MPMG Monique Mosca Gonçalves lembra que a Constituição já garante proteção mais robusta aos animais: "A interpretação atual do Supremo Tribunal Federal reconhece os animais como seres sencientes e portadores de dignidade própria. E, em caso de conflito, a Constituição prevalece sobre o Código Civil" (foto: Pádua de Carvalho)
Para a promotora de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) Monique Mosca Gonçalves, autora do livro Dano Animal, o projeto do novo Código Civil representa avanço simbólico, mas com limitações. “Enquanto a lei especial não for criada, os animais continuam sendo tratados como bens. E isso compromete a eficácia da mudança”, alerta. Apesar disso, ela lembra que a Constituição já garante proteção mais robusta aos animais, especialmente com a vedação à crueldade prevista no artigo 225. “A interpretação atual do Supremo Tribunal Federal reconhece os animais como seres sencientes e portadores de dignidade própria. E, em caso de conflito, a Constituição prevalece sobre o Código Civil”, reforça. 
 
Mesmo diante do conservadorismo no Congresso, os especialistas apontam avanços recentes, como a aprovação da Lei Sansão, a proibição de testes com cosméticos em animais e o Sistema do Cadastro Nacional de Animais Domésticos. Para a professora de balé Laysa Leão, a tentativa de ver sua cadelinha reconhecida como sujeito de direito pela Justiça terminou em frustração. O caso ocorreu em Belo Horizonte e exemplifica os obstáculos que ainda existem no Judiciário. A lhasa apso Mel, de 10 anos, teve uma fratura grave na articulação coxofemoral quando era filhote. Em 2019, foi levada a um pet shop para banho e acabou cruzando com outro cão, sem autorização da tutora. Além de cinco filhotes, o resultado foi uma gestação de alto risco, que agravou sua condição física e lhe deixou com sequelas permanentes.
 
Para a professora de balé, Laysa Leão, a tentativa de ver a cadelinha Mel reconhecida como sujeito de direito pela Justiça mineira terminou em frustração:
Para a professora de balé, Laysa Leão, a tentativa de ver a cadelinha Mel reconhecida como sujeito de direito pela Justiça mineira terminou em frustração: "A Justiça ignorou todo o sofrimento a que ela foi submetida" (foto: Pádua de Carvalho)
Determinada a buscar reparação, Laysa entrou com uma ação judicial e pediu que sua cadela fosse reconhecida como autora da ação, mas o pedido foi negado. “Não houve nenhuma sensibilidade. A Justiça ignorou todo o sofrimento a que ela foi submetida em consequência do ocorrido na clínica”, lamenta a tutora. Segundo a advogada Gabriela Maia, que atuou no caso, Minas Gerais conta com legislação avançada no campo do Direito Animal, mas enfrenta entraves na aplicação prática. “Temos um arcabouço legal importante, mas o Judiciário ainda é conservador, o que  acaba travando os avanços”, afirma. Para ela, a reforma do Código Civil representa um passo importante na consolidação do Direito Animal no Brasil, abrindo espaço para um debate mais amplo sobre a dignidade dos animais e sua proteção jurídica.
 
A advogada Gabriela Maia:
A advogada Gabriela Maia: "Temos um arcabouço legal importante em Minas Gerais, mas o Judiciário ainda é conservador, o que acaba travando os avanços na aplicação do Direito Animal. A reforma pode ajudar nesse sentido" (foto: Paulo Márcio)
 

O que a mudança no Código Civil propõe para os pets
  • Reconhecimento do vínculo afetivo – Art. 19: Afeto entre humanos e animais como parte dos direitos da personalidade.%u2028%u2028%u2028
  • Família multiespécie – Art. 1.566, §3º: Guarda compartilhada, direito de visitas e divisão de despesas após separações.%u2028%u2028%u2028
  • Animais como seres sencientes – Novo Art. 91-A: Reconhecimento de que animais não são bens, mas seres com sentimentos.%u2028

    Pontos problemáticos identificados
  • Localização inadequada no Código: O art. 91-A segue inserido no Livro dos Bens, o que contradiz o objetivo.%u2028%u2028%u2028
  • Regime jurídico subsidiário: Enquanto não houver o Estatuto dos Animais, eles seguirão sendo tratados como bens.%u2028

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