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Estado de Minas ENTREVISTA | LUZIENE MEDEIROS

Juíza da 6ª Vara Criminal fala sobre feminicídio

Ela já viveu o drama da violência dentro de sua própria casa


postado em 19/02/2019 14:23

(foto: Violeta Andrada/Encontro)
(foto: Violeta Andrada/Encontro)
Os números da violência contra a mulher no Brasil são alarmantes. Dados do Atlas da Violência 2018 mostram que o país registrou mais de 4.700 mulheres assassinadas – uma média de 13 por dia. A casa das vítimas é o local onde os crimes mais acontecem, o que quase sempre significa que o inimigo vive debaixo do mesmo teto e dorme, literalmente, ao lado. Em Minas Gerais, pesquisas da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp) apontam aumento de 9% dos casos definidos como feminicídio entre 2016 e 2018. Apesar de todos os esforços tanto do poder público quanto de órgãos não governamentais para proteger a mulher, o crime de gênero é diário e atinge todas as classes sociais. A história da juíza Luziene Medeiros do Nascimento, de 65 anos, da 6ª Vara Criminal, é prova disso. No início deste ano, ela atuou como juíza substituta em Varas de Violência Doméstica e Familiar no período de férias regulamentares. E muito do que viu nesse período a fez lembrar de sua própria experiência. Durante 12 anos ela mesma foi vítima de seu primeiro marido. “Eu me casei muito jovem, aos 21 anos. Quando o conheci tinha apenas 16 anos e havia acabado de me mudar de Natal para o Rio de Janeiro com a minha família”, diz. “Acreditava ter encontrado o príncipe encantado.”

Olhando para trás, a magistrada tem certeza de que o assédio moral que sofreu por tanto tempo foi tão devastador quanto as agressões físicas. “Eu me lembro de ter uma lista com pelo menos dez frases que ele utilizava constantemente para me depreciar. Dizia que eu só servia para esquentar a barriga no fogão e esfriar no tanque”. Determinada, mesmo jovem e inexperiente e com dois filhos pequenos para cuidar, conseguiu concluir a faculdade de direito e se libertar do seu algoz. “Sofri muitas humilhações e cheguei a passar necessidade. Mas venci o medo e reconstruí a minha vida.” Em sua casa, no bairro São Bento, ela abriu o coração e revelou à Encontro detalhes do seu drama pessoal. Também falou sobre o que a Justiça tem feito para coibir essa violência inaceitável. E diz que as mulheres sentem-se cada vez mais seguras para denunciar. “É preciso ter coragem para fazer valer as leis.”

  • Quem é: Luziene Medeiros do Nascimento, 65 anos

  • Origem: Natal, RN

  • Formação: Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia; Magistrada de Minas Gerais desde 1993

  • Carreira: Juíza titular da 6ª Vara Criminal, há onze anos. De 2014 a 2016, exerceu o cargo de Juíza de Direito junto à 6ª Câmara Criminal do TJMG. Atuou como advogada no Rio de Janeiro e em São Paulo nas áreas cível, comercial, trabalhista e empresarial

ENCONTRO - Segundo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o número de medidas protetivas solicitadas por mulheres no estado aumentou cerca de 413% nos últimos três anos. Por quê?
Luziene Medeiros do Nascimento - Não é possível mensurar se o que houve, de fato, foi o aumento do número de agressões ou o aumento das denúncias registradas. O certo é que hoje as mulheres possuem condições favoráveis para informar às autoridades competentes as violências sofridas. São vários os meios disponíveis para que não permaneçam sendo vítimas de seus parceiros.

A Lei Maria da Penha é considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) uma das três melhores do mundo no combate à violência contra as mulheres. Por que ainda não é o suficiente para coibir o feminicídio?
Entendo que isso se deve a múltiplos fatores. A começar pela educação machista direcionada aos meninos, que não trata do cuidado e respeito devidos às mulheres. A cultura do individualismo e o culto à violência de forma geral também influenciam no surgimento de pessoas desiquilibradas emocionalmente como sociopatas, psicopatas e narcisistas.

"Primeiro vieram as agressões verbais, depois as físicas. Como a maioria das vítimas, eu acreditava que ele ia mudar, afinal, ele sempre pedia perdão" (foto: Violeta Andrada/Encontro)
A Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (COMSIV-TJMG) mobiliza esforços em ações corretivas e preventivas junto à população. Na prática, o que tem sido feito de fato?
Para cumprir a Lei Maria da Penha foram criados em Belo Horizonte quatro juizados especializados com competência cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. Também foram criadas delegacias especializadas e locais apropriados para abrigar as vítimas. Ligando para o 180, na Central de Atendimento à Mulher, as usuárias têm atendimento 24 horas por dia e são encaminhadas a vários centros de ajuda.

Uma reclamação recorrente é a demora na concessão da medida protetiva, o que acaba colocando a vida das mulheres em risco. É possível mudar essa realidade?
Em Minas Gerais os casos de urgência recebem prioridade, principalmente, depois da instalação da audiência de custódia, na qual o magistrado pode decretar a prisão preventiva do acusado e verificar a urgência do caso. Contudo, mesmo havendo quatro varas especializadas em violência doméstica e familiar, o aumento do número de denúncias muitas vezes impossibilita a presteza nos atendimentos.

Ao sofrer qualquer tipo de ameaça ou agressão, como a mulher deve proceder?
O primeiro passo é acionar a Polícia Militar para registrar Boletim de Ocorrência, ir direto à Delegacia de Mulheres ou ainda à 18ª Promotoria Especializada da Mulher. Na sequência é instaurado inquérito policial com todas as provas necessárias ao esclarecimento do fato. Quando necessário, realiza-se exame de Corpo de Delito. A vítima também pode requerer as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha     que entender necessárias à sua segurança. De acordo com a Lei 13.641/18, o descumprimento de medida protetiva de urgência é crime, passível de detenção.

Em sua opinião, qual a importância de dar apoio psicológico tanto às vítimas quanto aos agressores?
É fundamental tratar o agressor buscando a origem do seu comportamento violento. Desta forma, é possível promover uma mudança comportamental necessária para fazê-lo rever as suas atitudes e compreender suas consequências.

Especialistas acreditam que quem é violento, na maioria das vezes, recebeu uma educação violenta. Como vítima de violência doméstica, a senhora compartilha da mesma opinião?
Em parte sim, porque somos fruto do meio em que vivemos. Entretanto, há muitos casos em que o agressor não sofreu violência nenhuma e, ainda assim, se tornou violento. Foi o que ocorreu no meu caso. Certamente essas pessoas possuem problemas psiquiátricos que precisam ser tratados.

"Quando me separei do meu agressor, cheguei a passar muita dificuldade financeira com os meus filhos. Mas segui em frente e reconstruí a minha vida" (foto: Violeta Andrada/Encontro)
No seu primeiro casamento, a senhora permaneceu 12 anos junto ao homem que a agredia. Por que não o denunciou ou se separou antes?
Ele foi o meu primeiro namorado e eu tinha apenas 16 anos. Fiquei encantada com o rapaz bonito e brincalhão que quase diariamente me levava rosas na escola. Foram cinco anos de namoro e nenhum sinal de que aquele sonho romântico ia se transformar em um pesadelo. O comportamento estranho foi sendo mostrado aos poucos, após o casamento. Primeiro vieram as agressões verbais, depois as físicas. Como a maioria das vítimas, eu acreditava que ele ia mudar, afinal, ele sempre pedia perdão. Mas, sem dúvida, o mais difícil para a mulher que sofre violência doméstica é ter de encarar o seu agressor no dia seguinte.

A senhora se lembra quais eram os motivos das agressões?
Não precisava de motivos. No começo ele trabalhava fora e eu ficava cuidando da casa e das crianças. Como era o provedor da família, se sentia no direito de ser violento quando era contrariado. Um dia ele chegou em casa e se deparou com as crianças no nosso quarto e um copo de suco úmido sobre a televisão. Foi o suficiente para perder o controle e me agredir com um soco no rosto. Desmaiei e fiquei deformada. Mesmo assim, quando chegamos ao médico, eu menti e disse que tinha sofrido um acidente de carro.

Durante essa relação, algo lhe marcou mais?
Eu me lembro que dois anos depois de casados, ao receber a notícia de que eu estava grávida do meu segundo filho, ele comprou um medicamento na farmácia e aplicou à força em mim para que eu o abortasse. Não funcionou. Depois, chegou a me empurrar quando eu estava com oito meses de gravidez. Fiquei com tanto trauma que na hora do parto, não queria deixar o meu filho sair da minha barriga. Acreditava que ali ele estaria protegido.

E a sua família, como reagia aos fatos?
Só souberam da verdade após 12 anos, quando eu já estava me separando. Além das agressões, depois vieram as várias traições. O medo e a vergonha faziam com que eu mantivesse o meu martírio em segredo.

Mesmo diante de tanto sofrimento, a senhora conseguiu se formar em direito e se tornar juíza. De onde tirou forças para tanta superação?
Eu me lembro de ter uma lista com pelo menos dez frases que ele utilizava constantemente para me depreciar. Me chamava de burra. Dizia que eu só servia para esquentar a barriga no fogão e esfriar no tanque. E cada vez que ele dizia isto eu juntava todas as minhas forças para provar a mim mesma que aquilo era mentira. Houve dias em que eu tive pânico de levantar da cama e ir pra o trabalho, com medo de não dar conta. Quando me separei do meu agressor, cheguei a passar muita dificuldade financeira com os meus filhos. Mas segui em frente e reconstruí a minha vida.

Após o primeiro casamento a senhora teve mais dois maridos. Não sentiu medo de sofrer tudo de novo?
Não. Fui muito feliz com o meu segundo marido, do qual sou viúva e com quem tive o meu terceiro filho. E sou muito feliz no meu atual relacionamento. Descobri que existem homens diferentes, capazes de amar e respeitar as mulheres. Não perdi a minha alegria, nem a minha vaidade e muito menos a vontade de viver. Hoje posso dizer que me sinto realizada.

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