Publicidade

Estado de Minas COMPORTAMENTO

Você sabe o que é comunicação não-violenta?

Encontro entrevistou Dominic Barter, especialista nessa forma diferente de conviver e se comunicar


postado em 21/08/2019 16:06 / atualizado em 23/08/2019 17:13

Dominic Barter nasceu na Inglaterra e mora no Brasil há mais de 25 anos(foto: Violeta Andrada/Encontro)
Dominic Barter nasceu na Inglaterra e mora no Brasil há mais de 25 anos (foto: Violeta Andrada/Encontro)
É possível manter uma relação com alguém que tem valores radicalmente diferentes dos seus? O diálogo pode existir nas circunstâncias mais extremas? Essas são algumas das perguntas que passam pela cabeça de quem entra em contato com a comunicação não-violenta, uma forma diferente de conviver e de se comunicar proposta pelo psicólogo americano Marshall Rosenberg (morto em 2015) e que tem se tornado popular, mundialmente, nos últimos anos. Apesar de ser associada a técnicas para conversas interpessoais de forma a solucionar conflitos, a CNV é muito ampla e tem sido aplicada nos mais diferentes formatos, até para trabalhos com comunidades devastadas por guerras e no sistema de justiça.

O inglês Dominic Barter mora no Brasil há mais de 25 anos e tem se dedicado a um trabalho pioneiro com justiça restaurativa e com comunicação não-violenta por aqui. Trabalhando com crianças em favelas no Rio de Janeiro no final da década de 1990, ele foi dando vida a uma metodologia - os Círculos Restaurativos - que se tornou a primeira escolhida pelo Ministério da Justiça e secretarias de Educação no Brasil para projetos pilotos de justiça restaurativa, e hoje está em 49 países ao redor do mundo. Ele teve contato com a comunicação não-violenta (trabalhou com Rosenberg por 18 anos) quando procurava ferramentas que pudessem auxiliá-lo nos projetos como mediador de conflitos, e nunca mais se separou dela. E em um mundo polarizado como o atual, ela parece ser mesmo cada vez mais valiosa. "A CNV nos convida a repensar a maneira como nos relacionamos. É possível andar para a frente junto com o outro, apesar de toda essa doutrinação que recebemos de que a violência é necessária, de que é necessário usar o poder contra o outro. E também de que outras pessoas não escutam, não entendem, não estão abertas à parceria", explica.

  • Quem é: Dominic Barter, 51 anos

  • Origem: Lincoln, Inglaterra

  • Carreira: Precursor dos Círculos Restaurativos, cofundador e diretor da escola Espaço Beta, no Rio de Janeiro, consultor e mediador, dá aulas e palestras sobre Comunicação Não-Violenta. Ex-presidente do conselho diretor do Centro de Comunicação Não-Violenta (com sede em Albuquerque, Novo México, EUA)

Barter já se sentou com políticos em Brasília, com empresários, com presidiários condenados por atos "horrorosos", com pessoas duramente afetadas por guerras, mas diz que nunca encontrou alguém que não estivesse disposto a dialogar. E, na era das mídias sociais, vê como um problema o fato de as redes serem arquitetadas de modo a se poder falar muito, mas ter de ouvir pouco ou nada. Em Belo Horizonte para uma oficina sobre CNV em julho passado, ele conversou com Encontro. Confira:

"Eu, pessoalmente, nunca deixei de julgar. Tenho a mesma capacidade de impedir que meu cérebro julgue que eu tenho de impedir que minha unha cresça" (foto: Violeta Andrada/Encontro)
ENCONTRO - Pode falar sobre os "passos" da comunicação não-violenta para resolução de conflito?

DOMINIC BARTER - A forma predileta do Marshall Rosenberg de fazer tangível a CNV foi descrever várias distinções. Então, quando as pessoas falam em passos, estão se referindo às várias distinções que ele fez. Uma delas, por exemplo, é entre a fala e o sentido que está por trás dela. Nós somos encorajados a presumir que o sentido do que você me fala está nas suas palavras. Se alguém fala "Dominic, você é maluco de ter feito isso", eu entendo literalmente que a pessoa está me categorizando como sendo alguém com algum problema que me deslegitima. Se eu aceito esse rótulo, isso tem sérias consequências na minha relação com o outro. E logo começamos a discutir: "Eu, maluco? Você que é grosso de me chamar assim"... Dou este exemplo para dizer que é preciso estar atento à distinção entre as palavras que alguém usa e o que se quer dizer com elas. Não se deve presumir que mensagem enviada é mensagem recebida. Por isso, checa-se. "Você está dizendo que te frustra eu ter feito isso, porque você queria uma resolução mais competente da situação?", por exemplo. Nessa pergunta há uma procura de focar menos no que você pensa, e mais no significado subjacente a esse pensamento.

E se o interlocutor não estiver disposto a fazer o mesmo?

As famosas pessoas que não querem dialogar… Não estou dizendo que elas não existem, mas eu nunca encontrei uma. Ou melhor: nunca saí da companhia de alguém ainda acreditando que essa pessoa não queira ouvir. Concordo que, nos primeiros momentos, com certas pessoas, realmente parecia que elas não queriam. Mas, normalmente, eu descubro que elas não estão dispostas a repetir uma dinâmica doída do passado, em que falaram e não foram ouvidas. Ou em que foi pedido para ouvirem, e quando tentaram ouvir, o que veio soava tão horroroso, que sentiram injustiça, dor, medo, e pararam de ouvir para começar a se defender. Ou seja, não é que não queiram ouvir, mas que estão sem os subsídios necessários para poder ouvir naquele momento. Então, o que precisam é de mais apoio e não punição por não ter uma habilidade social que você gostaria que tivessem.

E não encontrou ninguém que não estivesse disposto a ouvir?

Não. Mesmo quando estou com políticos, em Brasília; no presídio, com pessoas que fizeram as coisas mais horrorosas que você possa imaginar; em outros países, no meio de uma guerra civil… Converso com pessoas que tentam me convencer de que são monstros, mas isso não sobrevive a uma escuta curiosa, que pretende descobrir se, apesar de comportamentos radicalmente diferentes dos meus - e que eu abomino - apesar disso, essa pessoa é um ser humano como os outros. Até agora, encontro meu semelhante em todo mundo com quem converso. E isso quer dizer que encontro pessoas que gostariam de se comportar de maneira diferente se soubessem como fazer isso, sem pagar o preço de sua dignidade, sem se colocar em risco.

É possível conversar sem julgar?

Esse é um ponto em que muita gente se confunde sobre a comunicação não-violenta. Eu, pessoalmente, nunca deixei de julgar. Tenho a mesma capacidade de impedir que meu cérebro julgue que eu tenho de impedir que minha unha cresça. Além de ser uma enorme ironia: a ideia de que eu não deveria julgar é feita à base de um enorme julgamento: o de que julgar faz mal. Por isso, entendo que a questão não é julgar ou não. É saber a diferença entre meu julgamento e a pessoa na minha frente.

Estamos vivendo um momento de muita polarização. É melhor evitar conflitos?

Somos criados em uma cultura que tem aversão ao conflito, medo de conflito. Quando ele surge, tendemos a  nos afastar, o que piora as coisas. E há um certo relacionamento entre sinceridade e conflito, porque a verdade muda as coisas. E isso é bom. É para isso que ela serve: ela revigora. Mas, essa vida traz mudança e mudança incomoda. Então, eu preciso ter uma certa resiliência para conviver com você de verdade. (Para apenas viver perto, ser um conhecido, tentando não bater de frente, aí não preciso). Mas eu gosto de pensar que fomos feitos para viver na verdade. Só que, normalmente, achamos que ela precisa ser "administrada", que pode fazer mal, pode ser perigosa. Praticamos um pacto de insinceridade, mas o que ganhamos em troca é uma sociedade em que a democracia é apenas uma promessa - não só politicamente, mas também no casamento, na relação com os filhos…

"Somos criados em uma cultura que tem aversão ao conflito, medo de conflito. Quando ele surge, tendemos a nos afastar, o que piora as coisas" (foto: Violeta Andrada/Encontro)
A existência de conflito, então, não é um problema?

Não. O problema é não termos a musculatura necessária para isso. O músculo de resiliência, de viver num certo grau de sinceridade, de escutar de forma empática. Eu brinco que o conflito é extremamente generoso. Até que cada lado seja ouvido de verdade, ele retorna, retorna, retorna. Os conflitos sociais, as tensões interpessoais no casamento, na família, no trabalho… Todas essas são formas de a vida falar, até que resolvamos mudar. Mas isso envolve escutar. E é lindo, mas causa muita tensão, se a sociedade está procurando reprimir essas vozes. Então a comunicação não-violenta procura nos fortalecer, para termos a musculatura necessária para abrir espaço, em nossas relações e dentro de nós mesmos, onde seja seguro falar a verdade.

Como fica a CNV em um cenário em que as redes sociais sociais transformaram a dinâmica da comunicação?

Estamos pagando o preço por não preservarmos o equilíbrio entre fala e escuta. O que a internet possibilitou, o que as mídias sociais proporcionaram, foi um boom inacreditável de expressão. Isso deu vez voz a muita gente que nunca foi ouvida, o que é incrível. Mas é muito desequilibrado em relação à escuta. E é importante ressaltar que isso é uma questão do desenho das plataformas em si. Acredito que a tentativa de controlar a linguagem, mesmo quando o intuito é lindo, é autoritária. O que quero não é controlar ou diminuir a capacidade de expressão, mas um ajuste no desenho das plataformas para aumentar a importância da escuta. Para criar mais equilíbrio entre mensagem mandada e mensagem recebida.

De que forma as plataformas podem permitir essa escuta?

Tenho feito algumas consultorias com algumas das plataformas mais conhecidas e uma das propostas é que você tenha a opção, ao fazer uma postagem, de indicar se essa postagem acolhe comentários (como elas já funcionam agora) ou se ela tem a intenção de estimular o diálogo. Se esse for o caso, antes de colocar uma nova afirmação nos comentários, preciso primeiro resumir o que ouvi você falar em sua postagem. E quem postou precisa confirmar que foi entendido. E isso libera a pessoa a responder. Depois que você respondeu, preciso checar se entendi sua resposta, liberando nova resposta... Isso não é nenhuma impossibilidade tecnológica. Mas não conheço nenhuma plataforma, neste momento, que tenha isso como opção. Eu gostaria de ver.

Pode contar da sua primeira experiência com haters?

Foi muito fascinante, foi muito "2019". Fiz uma série de entrevistas, uma delas foi divulgada pelo El País, que é identificado como sendo de uma certa corrente ideológica. A primeira mensagem de ódio que recebi no Twitter, eu fui olhar o perfil e era uma pessoa bolsonarista. A segunda mensagem foi de alguém que parecia ser de esquerda. A surpresa para eles é que respondi as duas. A pessoa supostamente de esquerda não respondeu, mas a de direita sim, e tivemos uma conversa super legal. Era uma pessoa razoável, mas frustrada, e sabe o que queria dizer a mensagem dela? "Eu fico angustiado quando vejo entrevistas de figuras públicas que não falam sobre a corrupção financeira dos políticos."  Era isso.

Houve um grande esforço da sua parte em tentar ver o que estava por trás da mensagem desrespeitosa…

E é uma história incompleta se eu disser que recebi uma mensagem de um hater e fui lá responder. Mandaram as mensagens, eu fiquei muito preocupado (faço eventos públicos, é muito fácil saber onde estou, tenho uma filha adolescente...), e falei tudo isso para o meu sistema de apoio. Só depois de ter sido ouvido empaticamente é que descobri a criatividade, a força e a vontade de responder. E, ao responder o hater, eu não estava pedindo que ele me escutasse sobre como me senti ao ler sua mensagem - isso não funciona. Afinal, ele precisa de escuta, ou não teria falado desse jeito. Pedir escuta de quem está pedindo escuta nunca dá certo. Se eu tento responder, sendo que preciso de alguma coisa desse interlocutor, isso não é não-violência, é sacrifício.

Responder não é fazer favor para alguém que está sendo desrespeitoso?

Um mal entendido compreensível que as pessoas têm com a CNV é pensar: "Você quer que eu escute o racista que está me xingando? Que eu faça um favor para ele?" Não, não é um favor para ele. É uma vontade. E se essa vontade não existe, não responda. Mas entenda que, se essa vontade não existe, pode ser uma forma de seu organismo falar: "Antes de eu mesmo ter apoio, nem pensar". Depois de ter apoio, escuta, aí eu avalio se quero ou não responder, se isso é uma maneira de avançar. Eu, pessoalmente - e há 24 anos tenho essa hipótese -, acho mais perigoso a mensagem dele ficar no vazio, sem resposta, do que eu responder. Respondo, portanto, egoisticamente, não generosamente. Mas meu egoísmo não é individual, é relacional. Eu entendo 2019, em parte, como consequência de termos ouvido essas mensagens e apenas pensado: "Ah, meu tio é maluco, ele fala essas coisas mesmo". Ao sairmos da aldeia onde conheciámos todo mundo para nos conectarmos com gente do mundo inteiro - pessoas com realidades completamente diferentes -, ignorarmos o vizinho é muito perigoso.

*Leia também na edição impressa (nº 218) da Encontro 

Os comentários não representam a opinião da revista e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação

Publicidade