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Estado de Minas ENTREVISTA

Carla Madeira fala sobre sua carreira e seu novo livro

A escritora mineira abriu o jogo em temas como a relação com os leitores, as críticas que recebe e o sucesso editorial raro entre autores de primeira viagem


postado em 01/10/2019 00:59 / atualizado em 01/10/2019 01:55

Carla Madeira é jornalista, publicitária, diretora de criação e sócia da agência de comunicação Lápis Raro(foto: Violeta Andrada/Encontro)
Carla Madeira é jornalista, publicitária, diretora de criação e sócia da agência de comunicação Lápis Raro (foto: Violeta Andrada/Encontro)
"Não deixe para amanhã o que você pode fazer hoje". Os provérbios populares costumam ser certeiros. Mas o sábio conselho acima - que todo mundo certamente já ouviu pelo menos uma vez na vida - não foi de muita serventia para a jornalista e publicitária mineira Carla Madeira Carneirosócia diretora de criação da Lápis Raro, uma das maiores e mais premiadas agências de comunicação de Minas Gerais. Depois de iniciar o enredo de seu primeiro livro, Tudo é Rio, ela o deixou "cozinhando" por 14 anos. Poderíamos dizer que Carla fez como um chef atencioso, que deixa seu prato em fogo baixo até atingir o ponto perfeito. Mas não foi bem assim. "Na verdade, eu fiquei paralisada por uma cena que estava escrevendo e foi muito forte para mim", diz. Passado o susto - e alguns longos anos -, ela voltou revigorada e recomeçou o livro a partir daquela cena. Finalizou a obra em oito meses.

No caso do primeiro livro de Carla, o deixar o hoje para amanhã valeu a pena. Lançado em 2014, Tudo é Rio está na sexta edição e vendeu 6 mil cópias, um número raro entre autores de primeira viagem. O livro é capaz de provocar no leitor perguntas intrigantes como: Podemos perdoar o imperdoável? Há justiça divina quando há injustiça humana? Somos todos capazes do bem e do mal? "Escrever Tudo é Rio foi a melhor experiência artística de minha vida", afirma Carla. E olha que de experiências artísticas ela entende. Carla já cantou, teve banda, apresentou-se no Cabaré Mineiro, compôs, pinta...

Lançado no final de 2018, A Natureza da Mordida segue o caminho de sucesso do primogênito. A segunda edição já está encaminhada. O livro trata do encontro de duas mulheres que vivem diferentes formas de abandono e desafiam as fronteiras entre o bem e o mal.

Atualmente, Carla está debruçada sobre um terceiro livro, mas não arrisca falar de previsão de lançamento. "Sou muito estarrecida com a condição humana. Mais uma vez, é sobre isso", diz. Nesta entrevista, ela fala de seu processo criativo, da repercussão de suas obras e do momento atual da cultura no Brasil.

  • Quem é: Carla Madeira Carneiro, 54 anos

  • Origem: Belo Horizonte (MG)

  • Formação: É formada em jornalismo, publicidade e relações pública pela UFMG. É pós-graduada em marketing

  • Carreira: Diretora de criação e sócia da agência de comunicação Lápis Raro. É autora dos livros Tudo é Rio (2014) e A Natureza da Mordida (2018)

ENCONTRO - Você guardou o seu primeiro livro na gaveta por 14 anos, como uma cuidadosa cozinheira que começa a preparar a receita muito antes de acender o fogo.  Qual a razão de "cozinhar" o livro por tantos anos?

CARLA MADEIRA - Estava escrevendo uma outra história, quando criei a cena do bebê, que me paralisou por 14 anos (uma cena violenta em que um dos personagens tira o filho dos braços da mãe e o arremessa na parede). Estava tentando engravidar e essa cena foi muito forte para mim. Fiquei todo esse tempo sem escrever, sempre pensando em como seguir em frente depois daquilo. E sempre vinha um flash da história. Eu costumo dormir com o papel e a caneta ao lado. Pela manhã fico repassando as coisas. Quando voltei ao livro, pensei que, se aquela cena que tinha me paralisado por tantos anos, era o que realmente me interessava. Recomecei o livro por ela e aí escrevi o restante em oito meses.

Um autor 'frasista' não quer dizer um bom autor. A frase bonita é bacana, mas se você começa a tomar gosto pela habilidade de exibir frases bonitas, é péssimo
Um autor 'frasista' não quer dizer um bom autor. A frase bonita é bacana, mas se você começa a tomar gosto pela habilidade de exibir frases bonitas, é péssimo" (foto: Violeta Andrada/Encontro)
E A Natureza da Mordida, como nasceu?

Comecei a escrever seis meses depois de Tudo é Rio. Eu não tinha ideia do que ia surgir, estava apenas rascunhando algumas coisas. Um dia fui em uma banca de revistas na Avenida Bandeirantes, no bairro Sion, e uma mulher chegou ao meu lado. Ela começou a conversar comigo e a fazer confidências. Eu comecei a achar estranho e ficava pensando: "Gente, que mulher é essa? Que coisa louca!" Conhecer essa mulher virou um achado do livro.

De onde vem a sua história com as palavras?

Vem da música. Eu sempre gostei de arte, violão, pintura... Comecei a tocar violão aos 12 anos. Minha mãe era artesã e a grande artista da casa. Quando eu era criança e viajávamos, ela olhava para as nuvens no caminho e ia fazendo poesias. Eu pinto, tenho um grupo de aquarela que encontro semanalmente. Meu jeito de estar no mundo é sempre fazendo alguma coisa ligada à arte.

A primeira palavra de Tudo é Rio é "puta". Seus personagens usam palavras agressivas e desbocadas. Ao mesmo tempo, são amáveis e admiráveis. Generosidade e malvadeza caminham juntas?

Somos tudo isso, não é? Caminhamos com todas essas potências pela vida afora. Esse é um aspecto que me interessa muito.

Os dois livros têm passagens que parecem muito próximas da realidade do leitor. Eles falam de sentimentos que estão borbulhando o tempo todo ao nosso redor, como amor, erotismo, dor, perdão, saudade, silêncio... A profissão de publicitária ajuda no trato desses temas?

A publicidade me deu um treino grande com a síntese. Um filme publicitário, por exemplo, precisa contar uma história relevante em 30 segundos. Tenho esse treino em contar histórias de uma maneira muito imagética, com frases curtas, facilidade e interesse com a precisão das palavras. Isso dá muito ritmo para a narrativa.

No início de A Natureza da Mordida você deixa o leitor "embaralhado", como se experimentasse um processo de perda de memória. E você já disse que queria que o livro fosse escrito "com menos frases bonitas". Qual é a razão dessa preocupação?

Para mim, é fácil fazer uma frase de publicidade, mas isso é um perigo. Um autor "frasista" não quer dizer um bom autor. A frase bonita é bacana, mas se você começa a tomar gosto pela habilidade de exibir frases bonitas, é péssimo. A linguagem de Tudo é Rio é uma prosa poética. As pessoas me dizem que fazem muitos grifos de frases que elas querem guardar, porque estão ditas de maneira que as comovem. Queria que A Natureza da Mordida fosse uma experiência de linguagem diferente, menos poética. Era um desafio para mim, como autora, não me repetir em termos de linguagem. As pessoas me dizem que estão grifando muitas frases do A Natureza da Mordida, mas eu penso que os grifos são menos pela forma poética e mais pela densidade do que é dito. O fato é que você pode ter um livro incrível sem nenhuma frase linda. E isso me interessa.

O fundador da rede Mater Dei, José Salvador Silva, é um leitor compulsivo. Ele costuma dizer que seu maior medo é de ficar cego, pois não quer perder a companhia dos livros. Costuma presentar amigos com os livros que gosta. O seu é um deles...

Dr. Salvador ganhou Tudo é Rio de presente. Leu e gostou muito. Ele tem uma iniciativa maravilhosa de presentear as pessoas com os livros dos quais gosta. Nunca presenteia com um livro que não leu. Seus presentes sempre passam antes por seu olhar, o olhar de um grande leitor. Ele já deu de presente mais de 200 livros meus. Uma das pessoas que ganhou dele o Tudo é Rio entrou em contato comigo para dizer que tinha adorado e me contou do entusiasmo do Dr. Salvador com o livro. Fiquei com muita vontade de conhecê-lo.  Então, ele me ligou e foi maravilhoso tudo o que ouvi dele. Foi instigante e inspirador. Nós nos tornamos amigos, apaixonados que somos pela literatura. Em A Natureza da Mordida, ele está em meus agradecimentos. Ele sempre me diz: "Você não pode parar de escrever!" É muito motivador escutar isso.

Você foi sondada pelo cineasta Bruno Barreto para transformar Tudo é Rio em filme, mas declinou. Por quê?

Foi maravilhoso que o Bruno Barreto tenha lido meu livro e se interessado em filmá-lo. Fiquei muito emocionada com isso. Na ocasião, não estava ainda com muita clareza do que gostaria de fazer com Tudo é Rio em termos cinematográficos, mas tinha o desejo de que fosse dirigido por uma mulher. Eu já estava escrevendo A Natureza da Mordida e não consegui amadurecer a questão naquele momento.

Ler uma crônica inteira da Martha Medeiros, na revista do Globo, sobre Tudo É Rio foi um reconhecimento formidável. Ela me entregou palavras tão generosas que levei um tempo para conseguir dizer a ela o que estava sentindo
Ler uma crônica inteira da Martha Medeiros, na revista do Globo, sobre Tudo É Rio foi um reconhecimento formidável. Ela me entregou palavras tão generosas que levei um tempo para conseguir dizer a ela o que estava sentindo" (foto: Violeta Andrada/Encontro)
A escritora Martha Medeiros fez um texto sobre Tudo é Rio e definiu o livro como uma obra-prima e revolução literária. Ela cita o livro como "potente, perfeito e pronto". Como você se sentiu com a avalanche de elogios sem parcimônia da escritora?

Escrever Tudo é Rio foi uma experiência muita intensa  e ter vivido isso já teve um valor imenso para mim. Quando comecei a receber ressonâncias tão apaixonadas do leitor, foi indescritível. Acordar num domingo com uma crônica inteira da Martha Medeiros, na revista do Globo, sobre ele foi um reconhecimento formidável. Ela me entregou palavras tão generosas e com tanta força que levei um tempo para conseguir dizer a ela o que estava sentindo. Tenho entendido, ao participar de vários clubes de leitura, que sentir como o livro acontece no leitor, como cada um leva sua escuta particular ao encontro de um livro, é parte intensa do processo de um escritor. Tem sido muito rico.

A que você atribui o sucesso editorial dos dois livros, raridade entre os autores de primeira viagem...

Penso que as histórias são muito intensas. Ao desafiar a fronteira entre o bem e o mal, o leitor se envolve na reflexão sobre o que ele faria se estivesse no lugar dos personagens. Somos todos capazes do bem e do mal, e o leitor se vê diante dessa provocação. Acho que a linguagem também é muito fluída, imagética e isso torna a leitura envolvente.

Qual é o significado da literatura para você?

O poeta João Cabral de Melo Neto falava que o escritor escreve por duas razões: para transbordar ou preencher. Eu sinto que em Tudo é Rio foi para transbordar. Quando o terminei, coloquei um ponto final no meu casamento. Já A Natureza da Mordida foi para preencher. Tenho um prazer enorme em ficar horas escrevendo. Independentemente do que acontecer com o livro, a experiência da escrita já tem um valor imenso para mim. Agora, tenho experimentado a realização de ver o livro acontecer para o leitor. Sentir o quanto isso o afeta tem sido indescritível. Outra alegria é ser parte dessa potência que é a literatura. Nada é mais potente para nos ajudar a enxergar o outro, a ter empatia e respeito pelas diferenças, do que a arte.

Quais escritores te inspiraram para os dois livros? Biá, personagem de A Natureza da Mordida, faz citações de diversos autores, que são listados no fim do livro, como Clarice Lispector, Kafka, Paulo Leminski, Lacan e Carlos Drummond de Andrade. Seriam eles?

Muitos dos escritores citados por Biá foram importantes. Mas muitos outros também. Não teve um autor específico que tenha me inspirado na escrita de meus livros. Mas sempre li muito e certamente todos eles escreveram meus livros comigo.

Você já está escrevendo o terceiro livro. Pode adiantar um pouco sobre ele?

Já estou com uma história bem encorpada. Mas tenho muito trabalho pela frente e não arrisco  uma previsão de data de lançamento. Sou muito estarrecida com a condição humana. Acho nossa situação dificílima e, mais uma vez, é sobre isso, sobre sermos enredados por circunstâncias que não controlamos e, ainda assim, precisamos enfrentar. 

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