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Estado de Minas ENTREVISTA

Criadora do Padecendo no Paraíso lança livro

A obra Sem Paraíso e Sem Maçã mescla a história de Isabela Nogueira Soares da Cunha - a Bebel, e casos do grupo de Facebook, que foi arquivado devido à polaridade política


postado em 17/08/2020 14:00 / atualizado em 17/08/2020 14:20

"O casal foi para o home office, mas dispensando a empregada doméstica. A mulher então começou a fazer comida, lavar, cuidar da casa, enquanto o marido entrava no escritório, fechava a porta e só saía para comer. Teve casamento que acabou se desfazendo" (foto: Divulgação)
Uma das comunidades de internet mais conhecidas de Belo Horizonte, o grupo fechado de Facebook Padecendo no Paraíso tinha 10.400 participantes logo antes de ser arquivado, em junho passado. Criado há quase dez anos pela arquiteta Isabela Nogueira Soares da Cunha, a Bebel, para falar sobre maternidade, ele foi espaço de compartilhamento de dúvidas, desabafos, dicas e apoio para muitas mulheres. A comunidade até saiu do virtual para o presencial (com encontros e eventos "físicos"). Foi notícia na cidade, então, quando a criadora e principal moderadora do grupo decidiu arquivá-lo, principalmente devido a divergências políticas e ideológicas entre participantes, o que estava fazendo do trabalho de Bebel desgastante e muito menos prazeroso - levando até a um retorno da depressão pela qual já havia passado anteriormente. "Geralmente, grupos de mães na internet nem debatem política. Mas eu, ao contrário, sempre achei importante termos pautas políticas, tanto que sempre falei que não era um grupo de mães, mas um grupo de mulheres que têm filhos", diz. "Só que a polarização estava muito grande", explica.

Muitas das padês (como são chamadas as participantes) ficaram órfãs desse espaço de compartilhamento. Elas podem matar saudade da experiência no livro lançado no início deste mês por Bebel, Sem Paraíso e Sem Maçã, pela Literare Books. Nele, ela conta sua vida - inclusive seu processo de luta contra a depressão e contra o câncer de mama - e casos marcantes dessa década do Padecendo. A obra, que teria potencial para um lançamento cheio de aglomeração da comunidade das padês, teve de ser lançada virtualmente, devido à pandemia do novo coronavírus. Segundo a autora, apesar de não ser a mesma coisa, foi possível fazer eventos online calorosos e com trocas com os leitores. "Acabou sendo emocionante", diz. Nesta entrevista, Bebel fala sobre a polaridade em grupos de internet, a experiência de escrever sobre momentos difíceis da vida e sobre a visão materna, demonstrada no grupo, sobre a pandemia. Confira:

  • Quem é: Bebel Soares, 45 anos

  • Origem: Divinópolis/ MG

  • Formação: Formada em arquitetura e urbanismo pela PUC Minas

  • Carreira: Trabalhou como arquiteta por 15 anos e fechou o escritório para se dedicar à rede Padecendo, criando conteúdo, produzindo eventos para mulheres, dando palestras. É colunista do jornal Estado de Minas desde novembro de 2019 e da Canguru News desde abril de 2020. Autora do livro Sem Paraíso e Sem Maçã e organizadora do livro Manual da Boa Mãe. É também ilustradora

Encontro - Por que decidiu criar o grupo de Facebook Padecendo no Paraíso?

Bebel Soares - Criei o grupo em 2011. Meu filho estava com um ano e meio e dando muito piti. A maternidade não era nada daquilo que tinham me apresentado. Então eu fiz o grupo para trocar ideia com outras mães. Eu achava maternidade muito solitária, não tinha mais com quem sair, precisava de ajuda, e vi que outras estavam na mesma situação que eu. Existem muitos livros voltados para a maternidade falando "faça isso, faça aquilo", mas a prática não funciona como na teoria.

Os temas, desde o início, envolviam questões políticas, de empoderamento feminino?

Ele começou mesmo abordando mais maternidade, criação de filhos, parto. Mas nossos filhos foram crescendo, nós fomos amadurecendo, e os temas foram mudando. Então começamos a ter pautas mais voltadas para feminismo, o feminino, as necessidades da mulher. Isso porque, depois da maternidade, passamos a ser vistas apenas como mães, mas a mulher que existia antes não morreu. Começamos a falar sobre nossos direitos, sobre ter voz, buscar um casamento melhor, com mais cumplicidade, divisão de tarefas. E também sobre separação, guarda de filho... E muito de política. Afinal, viver é ato político, maternar é ato político. Mas falar de política não é fácil. Foi ficando uma missão muito difícil.

Por que decidiu arquivar o grupo?

Eu ficava quase 24 horas por dia por conta. Não conseguia me desligar, mesmo viajando, mesmo de férias. E aí foi ficando desgastante para mim. Chegou em um ponto em que achei que não precisava mais passar por isso. Foi no início do isolamento social. Já estava difícil, eu muito preocupada com pessoas morrendo. Ficou mais pesado. Dentro desse contexto que estamos vivendo de pandemia, de sobrecarga materna, não quis ainda ficar me desgastando com isso. O grupo não estava mais com energia positiva que eu sempre gostei, com um espírito de unidade, de sororidade.

O desafio principal foi a questão política?

Sim, foi piorando com a questão política. Geralmente, grupos de mães na internet nem debatem política. Não deixam ter esses assuntos. Mas eu, ao contrário, sempre achei importante termos pautas políticas, para a gente ir enxergando a forma de o governo fazer as coisas, para falar sobre elegermos mais mulheres, mudar o perfil branco e masculino dos nossos representantes, que não representam a população toda. Falamos de racismo, machismo, homofobia. Tanto que sempre falei que não era um grupo de mães, mas um grupo de mulheres que têm filhos. Mas a polarização estava muito grande, e as pessoas mais conservadoras não aceitavam esse tipo de pauta.

Você está com um grupo menor agora, certo?

Muito recentemente, foi criado no início de julho. É um grupo menor, são menos de mil pessoas, mulheres mais progressistas, com visão mais parecida com a minha. São as pessoas que eram mais engajadas, mais ativas, participavam dos eventos, sempre encararam o grupo como apoio e passaram a me pedir para ter algo assim. Mas neste, que se chama Padecendo Experiência (pois ainda é em caráter experimental, mesmo), vamos trocando a moderação. A cada semana, uma das participantes modera. Então quase não estou entrando no grupo para olhar. Assim, conseguimos recuperar a energia original do grupo, voltou a ser rede de apoio. E assim as mulheres também passam a ter a oportunidade de ver como é difícil a atividade de moderação, como é receber um comentário mais agressivo, o que fazer com isso, etc.

Acredita que priorizar o autocuidado é mais difícil para mulheres e para mães?

Acho que sim. A gente faz muito pelos outros, se preocupa muito com filho, marido, a gente esquece do nosso lado. Até demora para começar um tratamento, ir fazer exame, ir ao médico, porque coloca outros na frente, vai sempre adiando o cuidado conosco. E não tem ninguém que cuida da gente, normalmente. Quando arquivei o grupo, disse que estava precisando cuidar de mim. Eu comentei lá que sempre havia dito para elas que elas precisam cuidar de si em primeiro lugar, e que era, então, o que eu estava fazendo também.

Quanto ao seu livro, ele é sobre a sua história ou de casos que passaram pelo Padecendo?

Os dois. Falo sobre mim e conto histórias do grupo que me marcaram, que me fizeram enxergar coisas que eu não via. Desde abuso sexual a violência doméstica, passando por perda gestacional, adoção, coloquei um pouco de cada tema no livro.

Como abordou a sua história com a depressão no livro?

Desde que comecei a fazer o tratamento, em 2016, resolvi falar sobre isso no grupo. Tive muita dificuldade em aceitar, demorei muito para procurar ajuda profissional, eu já estava bem no fundo do poço quando procurei ajuda, e até hoje faço acompanhamento psiquiátrico. E é preciso falar mais sobre esse assunto. Muitas mulheres me procuram, me mandam mensagem, me pedem ajuda, e falo para fazer terapia, não ter medo de tomar remédio, caso a orientação seja essa, que é uma doença. Achei fundamental colocar no livro, porque sei que muita gente começou a se tratar por causa dessas conversas. No livro, consegui aprofundar um pouco mais sobre o tema. Eu tinha muita insônia e passei a escrever, à noite, exatamente como estava me sentindo, e coloquei assim no livro. Aliás, foi outro motivo que me fez arquivar o grupo, eu estava voltando a ter depressão, uma crise mais forte, e vi que a causa era o caminho que eu estava seguindo. Então decidi focar na minha cura, em melhorar de novo.

Você também fala sobre o câncer de mama no livro. O que compartilhou, do seu diagnóstico e tratamento, na obra?

Contei tudo desde o primeiro exame, cada exame, cada efeito colateral. Existem tantas mulheres que passam pela mesma coisa, pensei que poderia ser útil. Meu diagnóstico foi no dia 25 de março de 2019. Eu fiz uma cirurgia, radioterapia e hoje tomo remédio para evitar recidiva.

Como foi falar sobre isso com o seu filho, na época com 9 para 10 anos?

Contei para ele no mesmo dia em que descobri. Eu sempre fui muito transparente e fiz o mesmo nessa situação. Ele perguntou se eu ia morrer, e eu falei que não sabia se ia morrer, mas que o médico havia dito que eu tinha 80% de chance de viver. Então, eu iria me apegar aos 80%. E perguntei: "você acha que estou certa?" Ele disse que sim. Resolvi conversar dessa forma, porque eu nunca poderia prometer a ele algo que eu não poderia cumprir. Eu também o levei em uma das consultas antes da operação, para que ele visse que eu não estava mentindo. Mesmo que seja às vezes mais difícil, eu sempre sou muito transparente.

Pode falar um pouco sobre as histórias do Padecendo que te marcaram e que estão no livro?

Incluí, por exemplo, a história da Márcia. Quando criança, foi moradora de rua, pois foi despejada com a família de onde morava. O pai tinha abandonado a família, não pagava despesas, ela foi morar na rua. Ela e a irmã continuaram estudando. Depois ficaram em um terreno invadido que, anos mais tarde, conseguiu como doação. A Márcia tomou banho de chuveiro elétrico pela primeira vez aos 18 anos. Hoje, ela é contadora. Coloquei essa história porque, muitas vezes, não temos oportunidade de conhecer a realidade de pessoas que não têm as mesmas oportunidades que a gente. Ver como foi a realidade de crianças que passaram por tantas dificuldades. Também há história de perdas gestacionais, de adoção. Algumas muito pesadas, muito difíceis, muito doídas, e outras engraçadas, mais leves.

Foi também você quem ilustrou o livro. Podemos dizer que você não sofre de síndrome da impostora?

Não sofro. Quando eu quero fazer alguma coisa, faço. Não gosto de competir com outras pessoas, muito menos outras mulheres - algo que a gente aprende em nossa cultura - mas gosto de competir comigo mesma. Quando me proponho, faço o melhor que posso, e melhor hoje do que tinha feito ontem.

Como foi fazer o evento de lançamento do livro de forma virtual?

Era algo impensável. Eu adoro evento, encontrar as pessoas. Não imaginava não poder encontrá-las. E precisei autografar tudo em casa, sozinha, e fazer o lançamento virtual. Mas foi muito legal. Fizemos duas lives de YouTube, com pessoas fazendo perguntas, comentários em tempo real, eu pude ir respondendo. Foi bem caloroso, conseguimos fazer ficar menos impessoal. Li um pedaço do livro, as pessoas ficaram rindo. E acabou sendo emocionante.

O que foi conversado sobre a pandemia no grupo, antes do arquivamento, sob a ótica das mães?

Era muito falado como a sobrecarga materna estava muito grande. O casal foi para o home office, mas dispensando a empregada doméstica. Então foi a mulher que começou a fazer comida, lavar, cuidar da casa, enquanto o marido entrava no escritório, fechava a porta e só saía para comer. Teve casamento que acabou se desfazendo. A aula remota estava deixando muita gente maluca. A gente também estava falando muito sobre essa aula online, se vale a pena manter (a alfabetização remota, por exemplo, será que faz sentido?). E muitos posts sobre medicamentos não comprovados para Covid, a partir dos quais chamávamos as médicas do grupo para esclarecer. 

Há pesquisas que já demonstram como o baque na carreira, durante a pandemia, está sendo muito maior para mães que trabalham fora do que para pais. Isso era visível no grupo?

Sim, muito. Não tem como a mulher equilibrar todas as atividades, essa conta não fecha. Se o marido não contribui igualmente - o que é muito comum -, ela acaba tendo que abrir mão de alguma coisa, e como todo mundo precisa comer, a criança precisa de cuidados, acaba-se abrindo mão do trabalho. Houve relatos de mulheres produzindo menos, de mulheres que perderam emprego, e uma mulher desempregada comentou que foi chamada para trabalhar em um lugar, mas era presencial, e ela não pôde ir, porque não tinha com quem deixar o filho neste momento em que as escolas estão fechadas. A pandemia tem sido muito mais difícil para a mulher.

Já tem projetos futuros?

Já comecei a escrever outro livro, infantojuvenil. Como eu não deixei meu filho ler partes deste meu livro, porque não achei apropriados para sua idade, ele me pediu um que pudesse ler. Então vou contando casos de fazenda, que é onde eu fui criada, casos que aconteceram comigo, com ele. Vamos criar um personagem para viver as histórias. E estou também fazendo a ilustração de um livro infantil. Não quero mais ficar moderando grupo, quero fazer coisas mais artísticas e tranquilas. E continuar na escrita também.

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