Estado de Minas EDUCAçãO

'Adolescência': as lições da série e os desafios das escolas

Como colégios atuam na prevenção e enfrentamento de problemas como bullying, misoginia e mau uso da internet


postado em 29/05/2025 09:47 / atualizado em 29/05/2025 09:51

Série
Série "Adolescência", da Netflix, entrou para a lista das mais assistidas do streaming: produção explora as influências tóxicas e misóginas às quais os jovens são expostos na internet (foto: Netflix/Divulgação)
Em quatro episódios filmados em plano sequência, a minissérie “Adolescência”, da Netflix, se tornou um fenômeno global ao escancarar uma realidade que muitas famílias e escolas ainda relutam em admitir: a dificuldade dos adultos em responder aos complexos problemas enfrentados por adolescentes na contemporaneidade, como o bullying e o cyberbullying, a misoginia e o machismo, e os perigos escondidos nos meandros da internet, das dinâmicas cifras nas redes sociais aos cantos mais sombrios da dark web. 

Ao retratar a história de Jamie, vivido pelo ator estreante Owen Cooper, a produção britânica demonstra como comportamentos violentos e discursos de ódio podem se infiltrar muito precocemente entre adolescentes expostos a essa série de fenômenos, com manifestações discretas em casa ou no ambiente escolar que podem passar despercebidos por pais e educadores – até que seja tarde demais.

E se a série dramatiza situações ficcionais, o Brasil enfrenta casos reais que ecoam seu enredo. Em 2023, a Polícia Federal desarticulou uma célula online que recrutava adolescentes em fóruns misóginos, com pelo menos três planos de ataques a escolas interceptados. Pesquisas como a “Violência Online contra Mulheres” (2021), do Instituto Avon e Decode, revelou que 75% das brasileiras vítimas de assédio online são mulheres e meninas de até 24 anos.

O ambiente escolar, longe de ser imune, aparece tanto como palco dessas violências, vide o ataque, no ano passado, à Escola Thomazia Montoro, em São Paulo, realizado por um adolescente de 13 anos – mesma idade do personagem central de “Adolescência” – quanto como espaço crucial para prevenção. E, em Belo Horizonte, instituições de ensino se esmeram na busca de caminhos para enfrentar esses urgentes desafios, buscando estratégias que, como sugerem especialistas, vão muito além do discurso punitivo.

“Coisa de adolescente”? 

Gilda Paoliello, psiquiatra e psicanalista, experiente no atendimento a adolescentes, coloca o dedo na ferida ao afirmar que a escola é, por excelência, o espaço onde esses conflitos se manifestam com mais intensidade. “São horas de convívio diário, disputas por atenção, necessidade de pertencimento. Tudo isso em cérebros ainda em formação, sem a maturidade para lidar com frustrações”, explica. 

Ela descreve um cenário onde pequenas agressões cotidianas – um apelido maldoso, uma exclusão do grupo, um comentário misógino disfarçado de piada – podem escalar para situações devastadoras quando ignoradas. Os sinais, segundo a especialista, estão lá: mudanças bruscas de comportamento, isolamento, queda no rendimento escolar, ou pelo contrário, uma agressividade incomum. O problema é que muitos ainda veem isso como simples “coisa de adolescente”.

A dificuldade em identificar esses problemas se agrava com o advento do cyberbullying e a exposição a conteúdos perigosos na internet. Enquanto os adultos lutam para entender plataformas como Tik Tok e Discord, os jovens navegam por fóruns anônimos e até mesmo pela dark web, onde discursos de ódio e teorias extremistas se proliferam. 

“A minissérie mostra isso de forma crua: o garoto que comete o ato violento estava mergulhado na ‘cultura incel’, e ninguém percebeu”, observa Gilda, fazendo menção ao termo, que aparece na produção do streaming, e é uma abreviação para “involuntary celibate”, ou “celibato involuntário” em português, usada para designar uma subcultura online formada majoritariamente por homens que se identificam como incapazes de estabelecer relacionamentos românticos ou sexuais, apesar de desejarem. Originalmente, a palavra surgiu em fóruns na década de 1990 como um espaço de desabafo para pessoas que se sentiam solitárias, mas, ao longo dos anos, foi cooptada por grupos misóginos e extremistas.

A especialista critica ainda a falsa noção de privacidade que muitos pais e escolas insistem em adotar, alertando que o cuidado começa em casa. Ela lembra que verificar o celular e outros dispositivos eletrônicos do adolescente não é invasão, mas proteção. “Por um ‘suposto respeito à privacidade’, adolescentes são vítimas ou autores de barbaridades na internet”, assevera.

No DNA da escola

Nesse contexto, escolas pioneiras estão saindo da defensiva e adotando medidas concretas. O Colégio Bernoulli é um exemplo de como a capacitação docente pode fazer a diferença. Fernanda Queiroga, diretora da unidade Cidade Jardim, descreve um programa contínuo que transforma professores em agentes ativos na identificação e mediação de conflitos.

Para a educadora, não adianta fazer uma palestra uma vez por ano e achar que resolveu: a cultura de cuidado e respeito precisa estar no DNA da escola. Lá, os educadores aprendem a reconhecer desde micro agressões – aqueles comentários aparentemente inofensivos, mas carregados de preconceito – até indícios de que um aluno pode estar acessando conteúdos extremistas. 

O trabalho é complementado por projetos que levam os estudantes a refletirem sobre seu papel na construção de um ambiente saudável. “Realizamos palestras com especialistas, debates em sala de aula, análises de vídeos e textos que dialogam com o universo juvenil, sempre buscando criar pontes entre o conteúdo escolar e o que os alunos vivenciam fora da escola, inclusive nas redes sociais”, reforça. 

Quando o problema já está instalado, no entanto, a resposta não pode ser reduzida a medidas de punição. “Entendemos que muitos comportamentos inadequados são sintomas de sofrimentos silenciosos, e não apenas atos isolados de indisciplina. Nosso olhar é para a transformação, para a formação integral e para a construção de relações mais saudáveis e responsáveis”, sustenta Fernanda, citando que o suporte emocional é essencial para que as medidas adotadas não sejam apenas corretivas, mas verdadeiramente formativas. “O objetivo é tratar a raiz dos comportamentos, não apenas seus sintomas”, sinaliza.

Resposta rápida

As abordagens restaurativas também são o foco no Colégio Logosófico. “A atuação (quando ocorre algum incidente) é imediata. Buscamos conversar com todos os envolvidos para compreender o ocorrido e atuar de forma justa e equilibrada. A família, quando necessário, é convidada para uma entrevista, na qual planejamos juntos – escola, aluno e docentes – as ações corretivas, com foco na formação e no aprendizado a partir do erro. Destacamos que o pedido de desculpas, embora importante, não é suficiente. Ensinamos aos nossos alunos que os erros devem ser corrigidos com acertos – esse é um princípio fundamental no processo de superação e aprimoramento pessoal”, detalha Mayra de Castro Miranda Araújo, diretora-geral do Logosófico, indicando que, além disso, quando necessário, são tomadas medidas disciplinares ou encaminhamento dos envolvidos para atendimento com profissionais específicos.

“Trabalhamos para que cada aluno compreenda as consequências de suas ações e seja incentivado a refletir e agir de forma mais consciente e respeitosa”, acrescenta Vanessa Campos Nagem, diretora pedagógica da instituição. 

Preventivamente, ela cita a realização de palestras diretamente para as turmas de adolescentes e, conforme a necessidade, com as turmas das crianças. Alguns desses encontros envolvem também os familiares dos alunos. “Nessas conversas, é apresentada a ‘Lei do Bullying’ e são feitos combinados de convivência e reforçadas orientações importantes, como a não permissão de brincadeiras desrespeitosas e sobre a importância de buscar ajuda da equipe sempre que necessário. É também reforçada a importância do cumprimento das regras para o estabelecimento de limites”, informa, complementando que, periodicamente, são aplicados questionários que levam os alunos a refletirem sobre a sua colocação frente ao tema, com estímulo para que apresentem sugestões para uma melhor convivência.

Estímulo à autonomia

O protagonismo juvenil é a aposta do Colégio Santo Agostinho como ferramenta de prevenção. Marco Henrique Silva, diretor da unidade Gutierrez, implantou um sistema onde os próprios alunos, que integram as chamadas “Equipes de Ajuda”, são treinados para identificar e mediar conflitos, entendendo que eles, afinal, falam a mesma língua, estão nos grupos de WhatsApp, nas mesmas redes sociais e, portanto, podem ver o que os adultos não veem.

Além da iniciativa, a escola recorre a um protocolo específico para intervenção inspirado em um modelo idealizado pelo pesquisador escandinavo Anatol Pikas, o Método de Preocupação Compartilhada, que visa a criação de uma rede de apoio mútua no ambiente escolar. “Para isso, são previstas entrevistas da vítima, autor e espectadores com especialistas do colégio, ações de cuidado imediato e um plano de curto e médio prazo com os estudantes e familiares”, explica o educador. Os objetivos do protocolo englobam a restauração das relações entre os estudantes, a redução do sofrimento da vítima, o estímulo da autorregulação dos envolvidos e a prevenção das reincidências.

Para que esse conjunto de iniciativas seja bem-sucedido, porém, há um desafio extra: a necessidade de engajamento de todas as instituições. Essa necessidade de ação e atenção coletiva é ainda mais sensível e perceptível quando o debate é sobre as violências e abusos que ocorrem na internet.

“Infelizmente, os temas relacionados a essas subcomunidades estão cada vez mais na superfície, acessíveis aos adolescentes e jovens. Geralmente, são grupos com temáticas relacionadas à autolesão, transtornos alimentares, bullying e discurso de ódio. Sabemos que é um fenômeno complexo que atravessa as escolas atualmente”, reflete Silva. “Porém, para atuarmos efetivamente diante desse contexto, há que se considerar uma soma de esforços, que vai desde a relação dos pais com esse adolescente, o acompanhamento da escola e a atuação conjunta entre instituições públicas”, conclui.

O problema é de todos

O que fica claro, ao final desse mosaico de vozes, é que não há fórmula mágica para o enfrentamento dos desafios da contemporaneidade – mas há caminhos: desde a formação constante de professores até a criação de protocolos multidisciplinares, passando pelo envolvimento das famílias, as escolas precisam agir em diversas frentes. 

“Adolescência” acerta ao mostrar que, por mais difícil que seja falar sobre esses temas, o silêncio é sempre a pior opção. Uma tarefa que é de todos, como exalta a psiquiatra e psicanalista Gilda Paoliello ao citar um provérbio africano que ensina: “É preciso uma aldeia para educar uma criança”.

Os comentários não representam a opinião da revista e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação