Estado de Minas BEM-ESTAR

Por que os ultraprocessados são um perigo para a sua saúde diária

Ricos em aditivos e pobres em nutrientes, esses alimentos preocupam especialistas


postado em 17/07/2025 08:44 / atualizado em 17/07/2025 09:11

Alimentos ultraprocessados, além de ter um teor elevado de açúcar, sódio e/ou gordura saturada, possuem normalmente três aditivos cosméticos: aromatizantes, corantes e adoçantes sem açúcar (edulcorantes), substâncias que não têm função nutricional e entram nas fórmulas para reforçar cor, sabor e textura (foto: Freepik)
Alimentos ultraprocessados, além de ter um teor elevado de açúcar, sódio e/ou gordura saturada, possuem normalmente três aditivos cosméticos: aromatizantes, corantes e adoçantes sem açúcar (edulcorantes), substâncias que não têm função nutricional e entram nas fórmulas para reforçar cor, sabor e textura (foto: Freepik)
Um belo dia a gente resolve mudar. Amanhece como o queridíssimo personagem Hirayama (Koji Yakusho), do clássico moderno “Dias Perfeitos” (Wim Wenders, EUA, 2023), se levanta, rega as plantas, sai pela porta de casa, olha para o céu, respira bem fundo. E decide que, ao contrário do protagonista do filme que leva uma vida povoada de repetições, daqui pra frente, tudo vai ser diferente. Vamos fazer exercícios diários e opções alimentares mais saudáveis. Trocar o pão francês pelo integral, apostar nos iogurtes fitness, passar no supermercado e lotar o carrinho de barrinhas de cereais e de proteína para não cair na tentação de comer bobagens entre as refeições.

Mas nem tudo que reluz é ouro e o que muita gente não sabe é que produtos vendidos como saudáveis, absolutamente, não são. Ao contrário. Basta uma olhada mais atenta no rótulo para descobrir que aquele famoso produtinho não vale por um bifinho. O iogurte de morango tem tudo, menos morangos. O pão integral é feito com farinha de trigo enriquecida e conservantes e as barras de cereais, ah, essas nem se fala - podem ser repletas açúcar, gordura ou sódio adicionado. 

Toda essa contradição aponta para uma questão que tem fomentado discussões calorosas no Brasil e no mundo: o consumo excessivo de alimentos ultraprocessados. Criados na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) como uma solução prática - facilmente transportáveis e com alta durabilidade -, esses itens ricos em açúcar e gorduras visavam garantir a sobrevivência dos soldados no front. Mas se popularizaram, ganharam um investimento massivo das indústrias e, numa sociedade cada vez mais apressada, passaram a ser alternativas convenientes e baratas. 

Não é difícil perceber que, no corre nosso de cada dia, é cada vez mais comum trocar o arroz com feijão por uma lasanha congelada ou um pacote de salgadinho. Rápidos, práticos e saborosos, essas mercadorias se tornaram presença constante nas mesas. No entanto, por trás das embalagens sedutoras e de uma propaganda intensa, escondem-se riscos reais para a saúde. A cada dia surgem mais estudos que associam a demasiada ingestão de ultraprocessados ao aumento da obesidade e das chamadas Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) - cânceres, diabetes e doenças respiratórias e cardiovasculares crônicas. 

De acordo com Organização Mundial da Saúde (OMS), dentre outras entidades, as DCNT estão entre as dez maiores causas de morte no mundo. Dados da Fiocruz apontam que em 2019, uma pessoa morreu prematuramente, a cada seis horas, por consequência do consumo de ultraprocessados no Brasil. 

Esses alimentos são perigosos porque possuem altos valores de sódio, gorduras e substâncias sintéticas, poucos nutrientes e uma quantidade mínima de ingredientes naturais. Em países como os Estados Unidos e Reino Unido, a porcentagem do consumo chega a 80% da refeição diária. O Brasil não está numa situação tão crítica: cerca de 20% da dieta dos brasileiros é composta de ultraprocessados. Mas este é um número crescente e especialistas defendem um trabalho de conscientização e de educação alimentar e nutricional da população para reduzir os danos à saúde.
 
“Muitos desses produtos passam por um marketing que os associa à saúde, mas, na prática, são pobres em nutrientes e ricos em aditivos”, explica a nutricionista Márcia Sathler, 36 anos. Para a profissional, é importante abrir os olhos e buscar maiores informações. “Se você consome este tipo de produto, minha proposta é refletir. Não é um julgamento. É sobre ter conhecimento. Saber o que se está comendo e decidir conscientemente se quer prosseguir com o mesmo hábito. Isso é poder”, afirma. 
 
Atuando há anos no acompanhamento dos impactos da alimentação na saúde de seus pacientes, a nutróloga Ana Cláudia Cançado concorda. “É muito importante um movimento de esclarecimento para a população, que vira vítima dos recados na embalagem. Temos histórias das primeiras propagandas de leite condensado, que era anunciado como substituto do leite materno. Este tema segue muito nublado. Sempre me deparo com pessoas com muitas dúvidas. Pois uma barra de cereal ou de proteína não representa um alimento saudável, de qualidade. E é vendido como.” 
 
Aliada à falta de educação nutricional vivida pela população, um fator leva, paradoxalmente, a uma maior confusão: o over delivery de conteúdos em redes sociais — vídeos, listas, mitos, modismos — que confundem mais do que esclarecem. “Entre dietas da moda, promessas de detox e produtos rotulados como ‘sem glúten’, ‘sem lactose’ ou ‘com ferro’, perdemos o essencial: saber o que, de fato, é comida”, afirma a médica.
 
Mas, o que, de fato, é comida e verdade? “Eu não como nada que minha avó não reconheceria como alimento; comida de verdade é aquilo que brota”. A frase de Ana Cláudia sintetiza, de certa forma, a definição do Glossário Saúde Brasil, do Ministério da Saúde, que aponta como comida de verdade aquela fornecida pela natureza e que passa pelo mínimo de processamento possível. Mas nem tanto ao céu. Nossa avó não reconheceria, por exemplo, o “antioxidante ácido ascórbico” nos ingredientes de uma água de coco. No entanto, trata-se da vitamina C adicionada para evitar o escurecimento da bebida. As nuances sobre o tema são muitas e o aprendizado é diário.
 
Mas há verdades que seguem incontestáveis: o nosso arroz com feijão é uma dupla imbatível - mesmo passando pela indústria para beneficiamento e empacotamento. Temos ainda os legumes, frutas, leites, verduras, carnes frescas, peixes, ovos, leguminosas (como grãos de bico e lentilha), grãos integrais… São infinitas as possibilidades. E se esses produtos forem minimamente processados, ainda assim, estão na categoria dos benfeitores. 
 
Termo foi criado por um brasileiro
 
Foi um estranhamento - a queda dos dados de desnutrição no Brasil em contraponto a um aumento da obesidade e doenças ligadas a ela - que motivou o médico e epidemiologista brasileiro Carlos Monteiro, da Faculdade de Saúde Pública da USP, a propor um novo olhar sobre os alimentos. No começo dos anos 2000, ele e sua equipe foram atrás do que explicaria o fenômeno.
 
A conclusão, baseada em dados dos inquéritos de compra de alimentos feitos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) desde meados dos anos 1970, foi que a população vinha substituindo a compra de ingredientes culinários como sal, açúcar e óleos, e de alimentos como arroz, feijão e mandioca, por itens prontos para consumo, como macarrão instantâneo, bolachas, embutidos e refrigerantes. 
 
Em 2009, Monteiro e pesquisadores do Nupens/USP (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo) propuseram uma classificação com o objetivo de categorizar os alimentos com base no grau de processamento industrial a que foram submetidos. Chamado de Classificação Nova, o sistema definiu quatro grupos de víveres: in natura ou minimamente processados, ingredientes culinários, processados e os ultraprocessados - termo cunhado pelo cientista brasileiro é adotado hoje em dia pela OMS para classificar alimentos que passam por processos industriais extensivos e é discutido no mundo inteiro.   
 
O estudo influenciou significativamente o desenvolvimento do Guia Alimentar para a População Brasileira, documento oficial do Ministério da Saúde que visa orientar a população sobre escolhas saudáveis (confira quadro nesta página). O manual, que completou dez anos em 2024 e está disponível gratuitamente no site bvsms.saude.gov.br, é acessível e descomplicado. Além de determinar e exemplificar as diferenças entre alimentos industrializados e ultraprocessados - sim, são diferentes -, enfatiza os riscos à saúde associados deste último grupo, cujos ingredientes englobam aditivos como corantes, adoçantes e aromatizantes. Essas substâncias não têm função nutricional — entram nas fórmulas para reforçar cor, sabor e textura
 
A nutricionista Márcia Sathler, 36 anos, orienta seus clientes sem julgamentos: %u201CA mudança precisa fazer sentido. Trocar o pão de forma integral industrializado por um da padaria ou integral artesanal? Ótimo. Fazer pipoca na panela em vez de usar micro-ondas? Melhor ainda.%u201D (foto: Arquivo Pessoal)
A nutricionista Márcia Sathler, 36 anos, orienta seus clientes sem julgamentos: %u201CA mudança precisa fazer sentido. Trocar o pão de forma integral industrializado por um da padaria ou integral artesanal? Ótimo. Fazer pipoca na panela em vez de usar micro-ondas? Melhor ainda.%u201D (foto: Arquivo Pessoal)
A ideia é simples. Nem todo alimento que passa por um processo industrial é um vilão. “Todo ultraprocessado é industrializado, mas nem todo industrializado é ultraprocessado”, esclarece a nutricionista Márcia Sathler. E é importante compreender esses pontos. Arroz empacotado? É industrializado. E está tudo bem. É um grão que passou por processamento para facilitar seu consumo. Ao olhar para o rótulo, identificamos apenas um ingrediente: arroz. 
 
Outro exemplo que ilustra bem é o morango. A fruta em si, comprada na feira, é o alimento in natura. O morango lavado e selecionado, vendido no supermercado, é considerado minimamente processado. A geleia artesanal, que é feita com o cozimento da fruta e tem açúcar adicionado, torna-se um alimento processado. Já os biscoitos recheados, misturas em pó ou bebidas prontas com sabor morango são os ultraprocessados. Geralmente, nesses casos não existe sequer adição da fruta de verdade, mas apenas produtos que simulam o gosto, cheiro e a cor. 
 
“A base da nossa alimentação deve ser de alimentos in natura e minimamente processados.  Devemos evitar os ultraprocessados. Existe uma recomendação mínima de tolerância? Não. A regra de ouro do Guia Alimentar vai ser evitar. E aí há uma série de discussões em torno disso”, afirma a nutricionista.
 
E como há. A própria Associação Brasileira de Nutrologia (Abran) contesta a radicalização.  De acordo com a professora doutora Eline de Almeida Soriano. médica nutróloga e diretora da instituição, a Abran critica a classificação Nova, que popularizou o termo “ultraprocessado”, pela falta de critérios técnicos claros e rigor metodológico. “A associação não considera adequado generalizar todos os alimentos industrializados como prejudiciais, uma vez que o processamento industrial seguro pode ser fundamental para garantir segurança sanitária, preservar nutrientes e ampliar o acesso alimentar.”
 
O aumento do consumo de produtos industrializados ocorreu principalmente nas últimas décadas, em paralelo com a urbanização e mudanças nos padrões de vida. Contudo, a entidade alerta que o problema não é necessariamente o processamento em si, mas o desequilíbrio alimentar que pode surgir do consumo excessivo de produtos de baixo valor nutricional. “Pesquisas mostram um crescimento significativo no consumo de alimentos industrializados globalmente, mas é fundamental distinguir entre produtos que oferecem valor nutricional adequado e aqueles que são nutricionalmente pobres”, afirma Eline Soriano.

“Hoje eu tenho nojo de comida congelada”
 
Luiza Glória, 37 anos, teve uma vida baseada em dietas restritivas e lutas contra a balança. Em alguns períodos, o seu comer era um processo compulsivo, que gerava culpa e sofrimento. Tudo mudou quando, há alguns anos, a supervisora de produção e conteúdo da Rádio UFMG Educativa resolveu buscar a ajuda de uma profissional da área da nutrição com uma abordagem diferente. “Durante um ano, minha prioridade foi pensar minha alimentação para, finalmente, ficar em paz com a comida. Comida deve ser prazer, não tortura.” 
 
Foi quando ela iniciou o que podemos chamar de um processo de investigação dos ingredientes. “Na hora da compra, passei a observar que havia um molho de tomate pronto com muitos ingredientes desconhecidos no rótulo e uma quantidade enorme de açúcar. Mas, ao lado, havia outro apenas com tomate e ácido cítrico, uma substância da própria fruta, portanto, muito mais próximo do natural. E fui entendendo o que é melhor. Meu paladar foi mudando. Não suporto mais tanto sal, por exemplo, ou tanta gordura”.
 
Hoje, com uma consciência maior sobre nutrientes, ela consegue fazer melhores escolhas e trocas. Mas, apesar de ter eliminado muitos itens da sua lista de compras - “hoje eu tenho nojo de comida congelada” - a  jornalista afirma que é difícil, “diria até impossível”, falar que cortou todo o ultraprocessado da sua vida. “Às vezes, eu penso: ‘Nossa, vou tomar coquinha’. Mas não é mais todo dia, nem toda semana. Penso que dá pra dá para fazer essas trocas diariamente e, quando realmente tiver vontade, eu tomo.” Sem culpas.
 
Rita Lobo e seu best seller Panelinha (Ed. Senac São Paulo, 480 páginas, R$ 150): A chef e apresentadora sempre foi uma defensora dos pilares do Guia Alimentar para a População Brasileira (foto: Reprodução Instagram/Rita Lobo)
Rita Lobo e seu best seller Panelinha (Ed. Senac São Paulo, 480 páginas, R$ 150): A chef e apresentadora sempre foi uma defensora dos pilares do Guia Alimentar para a População Brasileira (foto: Reprodução Instagram/Rita Lobo)
O mesmo aconteceu com a jornalista Danielle Pinto. Foi a chef, apresentadora e escritora Rita Lobo quem despertou nela o interesse pelo tema. À frente do programa Cozinha Prática, do GNT, por 12 anos, Rita sempre se dedicou à defesa do Guia Alimentar para a População Brasileira. “Foi lendo Panelinha, o primeiro livro dela, que fui entender o guia alimentar, do qual eu, assim como a maior parte das pessoas, nunca tinha ouvido falar.” A partir desta leitura, ela passou a pesquisar os estudos do epidemiologista Carlos Monteiro e, ao buscar a ajuda de uma nutricionista para melhorar seus hábitos, já estava bem consciente da importância das escolhas. 

“Comecei a aplicar aqueles princípios na minha vida de uma forma bem prática”, conta. A leitura dos rótulos virou rotina. Por um tempo, levou a ferro e fogo a opção. No entanto, hoje em dia, consegue abrir exceções. “Se estou num aeroporto, é mais complicado achar um produto de qualidade, então, não sofro mais por isso.” Mas Danielle acredita que é importante seguir atento. De acordo com ela, para evitar este tipo de produto, é necessário um esforço individual, mas ele não é suficiente se não houver também um esforço político. “Não dá pra colocar na conta da mãe que está exausta e que não tem dinheiro para essa responsabilidade. É preciso estar muito atento a isso também.”

Pensa o mesmo Luiza Glória, que virou uma defensora das causas alimentares saudáveis. “A alimentação é algo básico de todo mundo, então, precisa ter uma atenção melhor em todas as todas as esferas, é uma questão de saúde pública. Os ultraprocessados não nutrem e é a outra face da obesidade, da desnutrição. Todos os dias surgem alimentos novos nas prateleiras, eles são mais baratos. Em contrapartida, a alimentação in natura é mais cara. Então, para a maior parte da população, o acesso é mais fácil a esses produtos. Comprar laranja e fazer um suco? Quantas vezes é mais caro do que comprar um pacotinho de suco em pó?”

Para ela, o caminho é a proibição de certos tipos de aditivos e um incentivo para baixar o preço dos alimentos in natura, como apoiar a agricultura familiar para que seja a base da alimentação. Além, claro, de disseminar a conscientização sobre esse tema. “Essa discussão é fundamental.”
 
Entre o ideal e o possível
 
A nutróloga Ana Cláudia Cançado defende tolerância zero aos ultraprocessados: %u201CA gente vai envelhecer. Não tem dúvida. E quando chegar o momento difícil %u2013 uma doença, uma cirurgia, um desgaste físico %u2013 quem tiver mais músculo, menos inflamação, sono bom e alimentação de verdade vai estar mais forte.%u201D(foto: Francisco Dumont/divulgação)
A nutróloga Ana Cláudia Cançado defende tolerância zero aos ultraprocessados: %u201CA gente vai envelhecer. Não tem dúvida. E quando chegar o momento difícil %u2013 uma doença, uma cirurgia, um desgaste físico %u2013 quem tiver mais músculo, menos inflamação, sono bom e alimentação de verdade vai estar mais forte.%u201D (foto: Francisco Dumont/divulgação)
Segundo a Ana Cláudia Cançado, o consumo habitual de ultraprocessados tem impactos diretos e profundos no corpo humano, incluindo processos inflamatórios crônicos, piora do sistema imunológico, doenças metabólicas, autoimunes e até degenerativas. “O sistema imunológico é como um porteiro. Quando vê muita coisa que não reconhece, entra em estado de alerta constante. E, quando cansado, começa a atacar o que não deveria — inclusive nossas próprias células.”
E a nutrição, afirma a profissional, é o planejamento do corpo para os imprevistos. “A gente vai envelhecer. Não tem dúvida. E quando chegar o momento difícil — uma doença, uma cirurgia, um desgaste físico — quem tiver mais músculo, menos inflamação, sono bom e alimentação de verdade vai estar mais forte.” Em outras palavras, o corpo saudável é um tanque de guerra silencioso.
 
Tanto para Márcia quanto para Ana Cláudia, Luiza e Danielle, os ultraprocessados, assim como a obesidade, são menos um problema individual e mais uma questão de saúde pública. Para as especialistas, reverter esse cenário depende de educação, acesso, políticas públicas e ânimo para enfrentar uma indústria bilionária. Mas também começa em casa, na lista de compras, na escolha da marmita, na lancheira do filho. E, acima de tudo, na consciência de que comida é muito mais do que nutrição: é identidade, cultura, saúde e, como bem lembra a nutróloga, “é o seu corpo dizendo que quer viver mais e melhor.”
 
“É difícil deixar a praticidade de lado. É a vida também”, reconhece a médica. Em um mundo em que mães preparam lancheiras às 6h da manhã, executivos almoçam em frente ao computador e famílias inteiras dependem do micro-ondas, o arroz com feijão, um franguinho e salada viraram artigo de luxo. 
 
Mas a proposta para melhorar a alimentação não é nostálgica. Ninguém precisa fazer pão ou iogurte do zero. No entanto, é preciso se reconectar, ao menos em parte, com a comida de verdade. “A gente se distanciou. Perdemos o ‘saber fazer’. Hoje, para muitos, cozinhar um feijão é um desafio. Mas será que é mesmo tão difícil?”, questiona Márcia. A alimentação caseira, mesmo com ingredientes simples e minimamente processados, é um caminho de volta à saúde e à autonomia alimentar.
Ainda assim, ela reconhece: a mudança não é fácil. É estrutural. “É menos sobre força de vontade individual e mais sobre saúde pública. O que precisamos é de políticas que ajudem as famílias a escolher melhor. Taxar ultraprocessados, por exemplo, pode ser um começo”, sugere, citando a oportunidade aberta com a Reforma Tributária e o trabalho de organizações como o Idec e a Aliança pela Alimentação Saudável.
 
Segundo Ana Cláudia, “a recomendação realmente é mirar no zero e tirar os ultraprocessados completamente da alimentação.” Mas, se não é possível, faça as melhores escolhas. “Você quer chocolate? Tudo bem. Mas qual chocolate? Dá para encontrar um com menos açúcar, sem gordura hidrogenada, com ingredientes de verdade”, legitima Márcia. 
A nutricionista caminha no mesmo sentido com seus clientes. Ela conta que seu papel profissional, nesse cenário, é mais de guia do que de juíza. “A mudança precisa fazer sentido. Trocar o pão de forma integral industrializado por um da padaria ou integral artesanal? Ótimo. Fazer pipoca na panela em vez de usar micro-ondas? Melhor ainda.”
 
Mas é preciso, de acordo com a nutróloga, um despertar coletivo e, inclusive, institucional. Para Ana Cláudia, falta informação até para quem deve promover a saúde. “Tem ultraprocessado em CTIs. A nutrição ainda é subestimada, inclusive nos hospitais”, afirma. “Muitos médicos ainda não acreditam no que uma boa nutrição poderia fazer pelos pacientes. Se o corpo está desnutrido, ele não vai tolerar uma quimioterapia, não vai reagir a uma infecção. E parte da internação hospitalar poderia ser evitada com comida de verdade.”
 
Apesar do rigor, a profissional defende leveza na relação com a comida. “A exceção não te mata. O que adoece é o hábito.” A chave, segundo ela, está no equilíbrio, na consciência, e no costume de abastecer a despensa com itens saudáveis.

Como identificar os ultraprocessados?
 
Normalmente, não é difícil identificar um produto ultraprocessado. Basta ler o rótulo. Se tiver listas extensas, com produtos que não conhecemos, não temos na nossa despensa e não conseguimos reproduzir em casa, bingo! “Se te peço pra fazer uma paçoquinha, você consegue. Sal, açúcar, amendoim e uma receitinha na mão e, com certeza sai a guloseima. Mas se eu te pedir um produto que contenha mono isso, hidrato de não sei o quê, emulsificante, espessante… Não tem como, não é?”, desafia a nutricionista Márcia Sathler.
 
De acordo com a nutróloga Ana Cláudia Cançado, uma das pistas mais simples para identificar um ultraprocessado é a durabilidade. “Quando você pega um produto com validade de um ano, que não precisa nem ir à geladeira... Isso é puro conservante. Eu brinco: nem o fungo quis colonizar aquilo ali”, comenta. Já um pão fresco, um queijo de verdade, mofam — e essa é a melhor das notícias.
 
Novas regras de rotulagem, que entraram em vigor no Brasil em outubro de 2023, também visam facilitar a identificação. Uma delas foi a inclusão de selos com o termo “alto em” acompanhada de uma lupa, indicando a presença excessiva de nutrientes como açúcares adicionados, gorduras saturadas e sódio. Além disso, a tabela nutricional passou a ser padronizada, com letras pretas em fundo branco, com informações como açúcares totais e adicionados, valor energético e nutrientes por 100 g ou 100 ml, bem como o número de porções por embalagem. 
Aplicativo auxilia nas escolhas
 
O Desrotulando é um aplicativo que ajuda a escolher os alimentos industrializados mais saudáveis. Com uma proposta educativa e prática, o app analisa as informações nutricionais dos produtos e atribui uma nota de 0 a 100, baseada na qualidade dos ingredientes e no valor nutricional. O funcionamento é simples: o usuário escaneia o código de barras do produto com a câmera do celular e, em poucos segundos, a ferramenta exibe uma análise detalhada do alimento, destacando pontos positivos e negativos. Além disso, sugere opções semelhantes com melhor avaliação nutricional. 
 
Descasque mais, desembale menos
 
O Guia Alimentar para a População Brasileira, documento do Ministério da Saúde, explica com alguns exemplos a diferença entre os tipos de alimentos: 
 
Alimentos in natura
  • São obtidos diretamente de plantas ou animais. Não sofrem qualquer alteração após deixar a natureza. 
  • Exemplos: legumes, verduras, tubérculos, castanhas, nozes, carne bovina, suína, aves e pescados frescos.
Alimentos minimamente processados 
  • Alimentos in natura que foram submetidos a algum tipo de processo como moagem, fermentação, pasteurização, refrigeração, congelamento. Não sofrem agregação de sal, açúcar, óleos, gorduras ou outras substâncias. 
  • Exemplos: farinhas de mandioca, milho ou trigo, macarrão ou massas frescas ou secas feitas com essas farinhas e água, leite pasteurizado, ovos, chá, café
Alimentos processados 
  • São fabricados, essencialmente, com adição de sal ou açúcar a um alimento in natura ou minimamente processados. Eles são derivados diretamente de alimentos e são reconhecidos como versões dos alimentos originais. 
  • Exemplos: queijos, pães, sardinhas enlatadas, frutas em calda e frutas cristalizadas.
Alimentos ultraprocessados
  • Formulações industriais prontas para consumo, feitas com ingredientes com nomes pouco familiares e não usados em casa (carboximetilcelulose, açúcar invertido, maltodextrina, frutose, xarope de milho, aromatizantes, emulsificantes, espessantes, adoçantes, entre outros). 
  • Exemplos: salgadinhos de pacote, refrigerantes e bebidas adoçadas, macarrão instantâneo, biscoitos recheados, chocolate, sorvetes e pães de forma.
 

Os comentários não representam a opinião da revista e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação