
Tudo começou em 2017, quando foi inaugurado, pelo projeto, o primeiro mirante de arte urbana do mundo: a rua Sapucaí. De lá pra cá, o local se tornou ponto turístico, passou por revitalização. Traços do CURA também se tornaram parte da identidade das regiões da Lagoinha e da Praça Sete, que exibe especialmente ao pedestre a imensa empena “Deus é Mãe”, do artista paulista Robinho Santana. Impossível passar imune. Desde 2021, o circuito se propõe a ressignificar a praça Raul Soares, antes um território de passagem, hoje sendo ocupada aos poucos pelo belo-horizontino.
QUEM É
Priscila Amoni, 40 anos, de Belo Horizonte
Carreira: Co-criadora, curadora e artista do CURA – Circuito Urbano de Arte. Mestre em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL).
Janaína Macruz, 42 anos, Novo Mundo, Mato Grosso
Carreira: Curadora e diretora artística do CURA. Cria e realiza projetos culturais desde 2007, tendo atuado nas áreas de música, cinema, teatro e artes visuais.
A Encontro conversou com as duas durante a última edição, realizada em setembro, na praça Raul Soares, onde mais três grandes murais foram deixados, com obras de Paulo Nazareth, um maiores nomes da arte contemporânea brasileira, e das artistas belo-horizontinas Juliana de Oliveira (@julianismo) e Sylvia Amélia. Agora, 13 obras podem ser avistadas do lugar, que aos poucos vai se transformando em um museu a céu aberto de arte urbana. A seguir, a íntegra da conversa:
Como nasceu a ideia da primeira edição do CURA e como foi aquele momento inicial de tirar o projeto do papel?
Priscila: O CURA nasceu primeiro como um desejo de pintura de empena, mas logo se transformou em algo maior: a vontade de criar um festival de arte pública que colocasse Belo Horizonte no mapa mundial do grafite. Dois artistas, eu e o Thiago Mazza (designer gráfico e grafiteiro mineiro), queríamos pintar um prédio e conversamos com a Juju Flores (Juliana Flores, diretora artística, gestora de projetos e uma das fundadoras do CURA; hoje à frente da Festa da Luz). Ela sugeriu que fizéssemos um festival e convidamos a Janaína. Então, eu, Juju e Jana criamos o projeto como uma declaração de amor a Belo Horizonte. Em 2015, nos inscrevemos na Lei Municipal de Incentivo à Cultura e, em 2017, realizamos a primeira edição, na rua Sapucaí. O impacto foi imenso: a rua, que tinha poucos comércios, se transformou em ponto de encontro cultural e turístico.
Janaína: Naquele momento não havia ainda festival de pintura de prédios em BH. Eu vinha de um projeto da prefeitura chamado Telas Urbanas, a Ju trabalhava com agenciamento de artistas e a Pri era muralista. A gente se juntou com a ideia de começar grande, já que não havia nenhuma empena pintada na cidade. Levamos dois anos desenhando o projeto até realizar a primeira edição.
Quais foram os maiores desafios enfrentados nesse percurso?
Priscila: O CURA enfrenta imensos desafios e sempre vai enfrentar, porque é um projeto feito na rua, gratuito, sem cerca, sem grade, sem ingresso. Isso significa lidar com o espaço público em sua essência: aberto, diverso, de encontros e também de conflitos. O maior desafio hoje é da escuta – estar atenta a ouvir movimentos sociais, o movimento negro, LGBTQIA+, a população de rua, as culturas periféricas. Já tivemos processos de moradores que não queriam as pinturas, já fomos questionadas até em investigação policial, como se estivéssemos incentivando vandalismo e pichação. Mas considero essas questões pontuais. O verdadeiro desafio, hoje, é coletivo: como manter as empenas, como garantir repintura e revitalização. Essas obras trazem benefícios para a cidade – atraem turismo, movimentam a economia local e dão voz a artistas.
Janaína: O grande desafio vem da própria essência de ocupar o espaço público. Para realizar uma pintura, você precisa lidar com muitos atores: síndico, moradores, proprietários, comerciantes, órgãos da prefeitura — BHTrans, SLU, patrimônio, regulação urbana. Além disso, a cena da arte urbana, os pedestres, os motoristas. Já enfrentamos processos, como no caso da obra da Criola, em que um morador que havia perdido na assembleia entrou com ação contra o síndico e, por consequência, contra nós. Ganhamos depois de dois anos. Outro episódio foi a obra “Deus é mãe”, de Robinho Santana, que usava estética próxima à pichação e gerou acusação de apologia ao crime. Conseguimos articular imprensa e Ministério Público para que não fosse adiante. Hoje temos maturidade para lidar com isso: sabemos que, se vier processo, contratamos advogado, preparamos defesa.
Nesses quase dez anos, o que o CURA ensinou a vocês e de que forma se transformaram nesse processo?
Priscila: O CURA é maior do que imaginamos: um organismo vivo, que abre caminhos próprios. Ele me ensinou sobre escuta, sobre a importância de uma curadoria inclusiva, que olha para além do eixo Rio-São Paulo, valoriza artistas do interior, indígenas, idosos. Aprendi a lidar com o dissenso e a colocar vozes periféricas no centro. Mais do que um festival, o CURA é uma prática de diálogo e de repensar a cidade.
Janaína: São quase dez anos de história e de maturidade. Nos tornamos mães nesse processo e aprendemos a lidar com diferentes setores – jurídico, patrimônio, órgãos públicos. O CURA também nos transformou por transformar a própria cidade. Onde passa, deixa arte, humaniza territórios e retira a arte da condição de privilégio, tornando-a parte do cotidiano.
Hoje vocês sentem que o CURA já está consolidado no calendário cultural de BH?
Priscila: Sem dúvida. O festival foi abraçado pela cidade e já faz parte da identidade de BH, atraindo também visitantes de fora. Nessa edição vimos o público se diversificar e o projeto ultrapassar bolhas. Mais do que um festival, ele deixa legado.
Janaína: É um evento esperado pela cidade e pela cena de arte urbana nacional. As pessoas aguardam ansiosas pelas novas obras. O CURA conquistou o coração de Belo Horizonte.
Como vocês avaliam o impacto que as obras deixaram na vida cotidiana da cidade?
Priscila: Só em BH já são mais de 30 empenas pintadas, cada uma levantando debates diferentes. Algumas emocionam pela espiritualidade, outras provocam por representar símbolos populares, como o Galo e a Raposa (mascotes do Atlético e do Cruzeiro, respectivamente). É uma arte democrática, que chega a todos, sem barreiras. Mesmo quem critica está sendo afetado. Também gera efeito em cadeia: inspira novos muralistas, movimenta turismo e comércio e pressiona o poder público a olhar para os territórios. É uma prova de que a ocupação cultural transforma espaços.
Janaína: A arte pública é democratização total do acesso à arte. O CURA virou ponto turístico oficial, usado até como referência de localização na cidade. Muitos moradores relatam orgulho de viver em prédios pintados, ou a alegria de abrir a janela e ver uma grande obra de arte. É transformação concreta da paisagem urbana e da vida cotidiana.
No caso da Raul Soares e de outros espaços ativados, mostrar novas formas de uso da cidade pode pressionar o poder público a agir?
Priscila: Sim. Fizemos até um dossiê da praça, apontando fragilidades e propondo ocupações. Houve pequenas devolutivas, como a instalação de iluminação, a árvore de Natal e a abertura de comércios. São sinais de que a ocupação cultural chama a atenção do poder público.
Janaína: Projetos culturais mostram a potência de um território. A Raul Soares, que era só de passagem, foi revelada como praça de convivência. Isso faz a Prefeitura de BH enxergar novos usos possíveis para a cidade.
Entre uma edição e outra, como se dá a escolha das empenas e dos artistas?
Priscila: O trabalho dura o ano todo. Já temos mapeadas as empenas e buscamos negociações com síndicos e moradores. Às vezes, participamos de reuniões de condomínio, apresentamos o festival, explicamos o processo. Não há pagamento aos edifícios: entendemos que entregamos uma obra de arte e a revitalização de uma fachada cega. É uma negociação longa, mas que gera frutos duradouros.
Vocês sempre destacam a presença feminina na equipe e na seleção de artistas. Qual a importância disso?
Priscila: O CURA é feito majoritariamente por mulheres, em todas as lideranças, e garante pelo menos 50% de artistas mulheres em cada edição. Isso corrige uma desigualdade histórica – antes, quase só homens brancos pintavam prédios. Oferecer oportunidades cria portfólios, visibilidade e impacto econômico para mulheres. É um diferencial do nosso festival, um cuidado que vem dessa ancestralidade feminina.
Janaína: Desde o início colocamos como premissa ter no mínimo 50% de mulheres e 50% de negros e indígenas. Muita gente dizia que não havia mulheres com técnica para pintar prédios. Mas acreditamos que oportunidade gera experiência. Hoje, a cena nacional já tem forte presença feminina.
O CURA também tem expandido para outros territórios. Como foram as experiências em Manaus e Nova Lima?
Priscila: Em Manaus, já realizamos duas edições do CURA Amazônia, criando o primeiro mirante de arte indígena em prédios do mundo. É um projeto de escala mundial, que reúne etnias diversas e afirma a importância da floresta e dos povos originários. Teremos uma terceira edição em breve. Já o CURA Macro, em Nova Lima, é o maior macromural do Brasil, com mais de 100 casas formando uma só imagem. Envolve inclusão social, economia local e turismo, e será replicado em outras cidades.
Janaína: O CURA Amazônia surgiu quase por acaso, quando um patrocinador nos pediu para realizar em Manaus. Foi mágico, porque estávamos estudando justamente a região amazônica em BH. Já pintamos quatro empenas no entorno do Teatro Amazonas e vamos chegar a 12. Em Nova Lima, o CURA Macro já nasce como um dos maiores projetos do país, conectando comunidade local e arte contemporânea..
Existe a possibilidade de expandir o CURA para o litoral? Quais novos territórios estão no horizonte?
Priscila: Sim, já existem conversas. O CURA segue expandindo, mas sempre com BH como coração do projeto.
Agora que o CURA se tornou associação, quais são os próximos passos?
Priscila: Transformamos o CURA em Instituto, o que amplia nossa atuação. Agora, ele não é só evento, mas guarda-chuva de projetos: festival, CURA Macro, CURA Amazônia, publicações, residências, ações em universidades. Isso nos permite receber patrocínios internacionais e mapear o impacto social e econômico de nossas ações. Para os próximos anos, queremos consolidar políticas públicas de manutenção das empenas e devolver à cidade a Sapucaí revitalizada no aniversário de uma década.
Janaína: O CURA é uma declaração de amor a Belo Horizonte e também um exercício de reflexão sobre que cidade queremos. Queremos uma cidade com praças vivas, sombra, água, espaço para crianças, arte acessível. O projeto caminha nesse sentido de reivindicar o bem-viver.