
E o fato de ser o Brasil o país escolhido para recebê-las acrescenta, em seu cerne, um matiz sublinhado pelo próprio curador da investida, o também diretor da Rede dos Museus da Região Marche Nord, Luca Baroni. “O ciclo brasileiro traz Rembrandt a um lugar cuja tradição artística, especialmente o barroco, oferece terreno fértil para um diálogo direto entre imagens e sensibilidades culturais. Assim, as paradas no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Vitória representam não apenas uma extensão geográfica, mas também uma expansão interpretativa”, avalia, em entrevista à Encontro.
O percurso em solo nacional, citado por Baroni em sua fala, teve o Rio de Janeiro como ponto de partida, no Centro Cultural dos Correios recebeu a coleção. Após a passagem pela capital mineira, a última parada será em Vitória, quando o Palácio Anchieta, sede do Governo do Espírito Santo, se incumbe de expor as obras deste que é reconhecido como um dos maiores mestres da arte ocidental. “Antes de chegar ao Brasil, a coleção teve uma vasta trajetória internacional. Uma importante parada ocorreu na Itália, onde encontrou um público que é bastante sensível à tradição europeia da gravura, assim como explorou a significativa (e notória) relação de Rembrandt com a arte italiana”, diz, referindo-se ao fato de o holandês ter sido fortemente impactado pela obra de artistas como Caravaggio.

Intensidade e observação psicológica
“Rembrandt - O Mestre da Luz e da Sombra” traz obras emblemáticas, caso de “Autorretrato com Saskia” (1636), na qual o pintor aparece ao lado de Saskia van Uylenburgh (1612-1642), com quem se casou em 1634. “Trata-se de uma imagem que combina afeto, leveza e observação psicológica. Nela, Rembrandt e Saskia aparecem juntos em um momento íntimo. Na tela, as figuras são equilibradas, igualitárias — um retrato duplo em que a esposa tem a mesma importância que o marido. É, pois, uma obra que retrata a felicidade dos anos em que o artista construía sua fama e, ao mesmo tempo, captura a espontaneidade do relacionamento entre os dois”, aponta.
Outra obra sobre a qual o curador se detém é “A Adoração dos Pastores: Cena Noturna” (1652), na qual a luz vem de dentro da cena, irradiando lentamente e criando um espaço silencioso, vibrante de intensidade. “Aqui, Rembrandt atinge um de seus ápices absolutos no controle do chiaroscuro (técnica artística que utiliza o forte contraste entre luz e sombra): a noite se torna um lugar da alma”, observa Baroni.
Por fim, ele destaca “O Jogador de Golfe” (1654), que entende como uma das obras mais fascinantes entre as cenas da vida cotidiana. “A obra retrata um homem concentrado em acertar uma bola com um gesto seco e preciso: um momento simples, quase um instantâneo, porém, observado com uma precisão que transmite a energia do movimento e a solenidade do gesto”. A obra, prossegue o curador, demonstra como a atenção de Rembrandt não se dirigia apenas a grandes temas sagrados ou históricos, mas, na realidade, a “tudo que merecia ser plenamente observado”.
Um artista em constante movimento

Para tal, Luca Baroni enfatiza ter selecionado cuidadosamente as folhas que documentam o processo de trabalho do artista: impressões de qualidade variável, vários estados da mesma placa, experimentos técnicos que demonstram como o artista modifica continuamente suas imagens. “Em outras palavras, o que busquei transmitir é Rembrandt como um artista em movimento, não como um monumento estático. A exposição visa transmitir a sensação de estar ao lado dele enquanto trabalhava, enquanto tomava decisões, enquanto assumia riscos e buscava novas soluções”, arremata.
Verdade humana e inovação técnica
Nascido em Leiden, em 1606, Rembrandt é considerado um expoente da Era de Ouro holandesa. Para Luca Baroni, a grandeza do artista deriva de sua capacidade de observar os seres humanos sem filtros, com uma atenção que vai além da aparência externa para alcançar a esfera emocional e espiritual. “Seus personagens — sejam eles mendigos, figuras bíblicas, estudiosos, crianças ou idosos — nunca são tipos simples, mas indivíduos reais, capturados em sua complexidade. Ao contrário de grande parte da arte de sua época, que tendia à idealização, Rembrandt escolheu representar a realidade como ela é, sem bajulação ou embelezamento”.

O domínio do chiaroscuro (“aquele ‘preto’ profundo e aveludado que nenhum outro gravurista alcançou com a mesma intensidade”), por sua vez, e ainda de acordo com o responsável pela curadoria da mostra, faz com que as imagens pulsem. “Rembrandt usa a luz não apenas para mostrar, mas para dar significado, para revelar. Essa maneira de construir o espaço através da sombra moldou a história da arte e continua a ressoar como uma voz notavelmente moderna. É precisamente essa combinação de verdade humana e inovação técnica que garante ao seu legado uma vitalidade que atravessa os séculos”, salienta..
Rembrandt deixou cerca de 300 pinturas, 300 gravuras e mais de dois mil desenhos, entre autorretratos, paisagens, retratos coletivos e cenas bíblicas. Entre seus trabalhos mais venerados estão “Ronda Noturna”, “Retorno do Filho Pródigo”, “Danea”, “A Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp”, “Homem de Turbante”, “A Tempestade do Mar da Galileia”, “O Banquete de Belsazar”, “Betsabá em seu Banho”, “Jacó Abençoando os Filhos de José” , “A Noiva Judia” e “Autorretrato com Dois Círculos”.
Embora tenha alcançado fama e dinheiro em vida, o artista morreu pobre e foi enterrado em lugar desconhecido. O reconhecimento de sua genialidade artística voltou a se dar a partir do século XIX e de forma ascendente.. Este mês, foi anunciado que a obra “Young Lion Resting”, da coleção Leiden, irá a leilão, sendo que a renda obtida será destinada a uma organização voltada à conservação de felinos selvagens, Panthera. A estimativa é que a venda alcance o patamar de 20 milhões de dólares. Até então, em se tratando de leilões, a obra de Rembrandt que detém o recorde de valor obtido em venda é “Retrato de um Homem com os Braços na Cintura”, que, em 2009, foi arrematado por 33 milhões de dólares. Rembrandt também tem o seu nome inserido na lista das dez obras de arte mais caras do mundo, com “Retrato de Maerten Soolmans” e “Retrato de Oopjen Coppit”, adquiridas em 2014 por 180 milhões de dólares, em um acordo firmado entre o Museu do Louvre e o Rijksmuseum.
Em tempo: desde 1911, a casa na qual viveu em Amsterdã entre 1636 e 1648 foi transformada em museu (Rembrandthuis) que, além das obras do pintor (pinturas e gravuras), também abriga peças de mobiliário que a ele pertenceram, bem como a reconstituição de sua oficina.
SERVIÇO
Exposição “Rembrandt – o mestre da luz e da sombra”
Casa Fiat de Cultura (Praça da Liberdade, 10)
Até 25 de janeiro de 2026
Visitação presencial: terça-feira a sexta-feira das 10h às 21h; sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h (exceto segundas-feiras)
Entrada gratuita