Estado de Minas ENTREVISTA

Médico mineiro vence Prêmio Jabuti com romance sobre a epidemia de Aids

Marcelo Henrique Silva conquistou o Jabuti 2025 com "Sangue Neon", obra que revisita os anos 1980 e a luta contra o HIV no Brasil


postado em 15/12/2025 08:54 / atualizado em 15/12/2025 09:16

"Acredito no poder da ficção para moldar uma opinião e mostrar uma realidade", afirma Marcelo Henrique Silva (foto: Divulgação)
Quando Marcelo Henrique Silva subiu ao palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, no final de outubro passado, para receber o Prêmio Jabuti 2025, o sentimento era de espanto. O médico de 32 anos, natural de Passos, no Sul de Minas, viu seu romance de estreia, “Sangue Neon”, ser consagrado como vencedor na categoria “Escritor Estreante: Romance”. Publicado pela Editora Faria e Silva, do Grupo Alta Books, o livro mergulha nos bastidores da epidemia de Aids no Brasil dos anos 1980, em um retrato pungente de medo, preconceito e solidariedade.

O êxito literário, contudo, não surgiu do acaso. Filho do jornalista Marcelo Renato Silva, editor de um jornal em sua cidade natal, Marcelo cresceu cercado de livros, jornais e palavras. Desde pequeno, foi sendo envolvido pelo universo da leitura, que o levou, naturalmente, ao da escrita – no começo, rabiscava histórias para a irmã, Marina. A medicina, escolhida mais tarde como carreira, silenciou por um tempo essa vocação, quando precisou focar, sobretudo, nas leituras mais técnicas necessárias para a formação. “Foi na pandemia que tudo voltou. Acho que aconteceu com muita gente que, nesse momento, também se viu repensando suas prioridades. Foi quando redescobri o desejo de escrever”, descreve.
 
  • QUEM É: Marcelo Henrique Silva, 32 anos
  • ORIGEM: Passos (MG)
  • CARREIRA: Médico formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), trabalhou como generalista no programa Mais Médicos e esteve na linha de frente durante a pandemia de Covid-19. Hoje, atua como radiologista especializado em oncologia em Belo Horizonte. Tem como foco o cuidado de grupos vulneráveis, minorias.
 

Dessa retomada nasceu “Sangue Neon”, obra que combina ficção com uma larga pesquisa histórica. O livro, afinal, se inspira em episódios reais para recriar o caos dos primeiros anos da epidemia de Aids no país. Na narrativa, médicos recém-formados, travestis marginalizadas e comissários de bordo se uniram em uma batalha pela sobrevivência. Há ainda o ímpeto de homenagear figuras históricas e dirigir o olhar à gênese da saúde pública brasileira, em um tempo anterior à fundação do SUS.

Marcelo articula na publicação um mosaico de vidas atravessadas pela dor e pela coragem. Em uma das passagens, por exemplo, ele apresenta ao leitor uma travesti nordestina – inspirada na história real de Brenda Lee – que transforma a própria pensão em abrigo para pessoas infectadas e sumariamente rejeitadas pela sociedade, inclusive por suas famílias. 

“Ganhar o Jabuti foi uma surpresa enorme, ainda estou processando”, diz o autor, que, entre plantões e períodos de residência médica na UFMG, escreveu o livro em fragmentos, de forma que define como quase artesanal. Na entrevista a seguir, Marcelo fala sobre o impacto do prêmio, as relações entre medicina e literatura, a força política da ficção e os paralelos entre as epidemias de HIV e Covid-19.

Como foi receber o Prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira? Foi uma surpresa?

Tínhamos uma expectativa grande em relação ao Jabuti. No ano anterior, o livro “Sangue Neon” havia sido publicado graças a um prêmio para escritores estreantes, o Alta Literatura, criado pela editora Alta Books justamente para revelar novos talentos. Vencer ali me deu o impulso inicial. Então, imaginávamos que, pelo fato de já termos tido um reconhecimento nacional, teríamos alguma chance. Contudo, cada premiação tem um júri e um esquema de avaliação diferentes. Tínhamos esperança e expectativa, mas éramos conservadores. Desejávamos muito ser indicados e participar do evento para divulgar o livro. Ganhar foi uma surpresa enorme, ainda estou processando.

Você é médico. Como a escrita surgiu na sua vida? Sempre gostou de escrever?

Na verdade, o amor por contar histórias, por criar e inventar, sempre existiu desde a infância. Meu pai é jornalista, editor de jornal na minha cidade, Passos, no Sul de Minas. Então, eu tinha muito contato com impressos: jornais, livros, revistas. Essa paixão por contar histórias surgiu naturalmente com o contato com a leitura. Eu escrevia livrinhos, escrevia para minha irmã, Marina.

Na faculdade de medicina, essa atividade parou. Fiquei um pouco afastado da literatura e passei muito tempo sem ler, pois a faculdade ocupava muito tempo. Foi já como médico formado, no início da pandemia, que eu resgatei esse hábito. Eu vim para BH para fazer residência médica na UFMG e, logo na primeira semana, a pandemia chegou. Acho que, de forma geral, as pessoas começaram a repensar seus planos e paixões. Comecei a ler novamente, e a paixão pela escrita ressurgiu. As coisas evoluíram, e eu percebi: ‘Poxa, agora quero escrever um livro, quero realizar esse sonho’.

O tema da epidemia da Aids surgiu, então, nesse momento, em que o país lidava com a pandemia de Covid-19?

Com certeza. No meu livro, tenho personagens que são médicos novatos, recém-formados, com altas expectativas. Existe o mito romântico do médico que resolverá os problemas do mundo. Esses personagens, no contexto dos anos 1980, sofrem um forte impacto com o início da epidemia de HIV. Era algo novo, não se sabia como tratar. Eu trouxe essa experiência para mim. Estava em uma situação paralela. Nos meus primeiros anos de formado, no início da residência médica e, de repente, surge uma doença nova. Claro, muito diferente, mas o contexto social, a forma como a doença foi explorada pela opinião pública… há algumas semelhanças: ser algo novo, ser manipulado. Aproveitei muito da minha experiência lidando com esse fato novo, transportando para o que aqueles médicos viveram nos anos 80.

Você tem 32 anos e não viveu a crise do HIV. Como se aproximou desse tema?

Sou de 1993, então, não tenho a memória do pânico dos anos 1990. Lembro que, quando eu era muito pequeno, as pessoas falavam, era um tabu, um assunto difícil. Mas na faculdade, principalmente nos primeiros anos, tivemos muitas disciplinas voltadas para a parte mais humanizada da medicina. Fui monitor de Antropologia Médica, que estuda os aspectos sociais e humanos da doença. A epidemia de HIV e Aids é um exemplo de agravo à saúde com repercussões que vão muito além da medicina em si. Desde essa época, mesmo sem ter vivido a época do HIV, eu estudei muito sobre isso. O assunto sempre me interessou e acredito que tem um grande potencial para ser explorado e isso foi pouco feito na ficção brasileira. E é interessante que as novas gerações conheçam esse período.

A convivência com a pandemia reacendeu várias questões, e vimos alguns erros sendo repetidos.

Exatamente. Caso da desinformação. Na época do HIV, falava-se muito que era uma ‘peste gay’, uma doença que só afetava os gays. E na pandemia da Covid-19, no século XXI, com todas as informações, achávamos que não passaríamos por algo assim, mas olha o que aconteceu: tanta desinformação, remédio sem eficácia, medo de vacina. Então, este ainda é um assunto atual. A resposta a grandes eventos mostra que ainda não estamos prontos, temos muito a aprender.

Sem dúvida... E como foi seu processo de escrita? 

Foi longo e fragmentado (risos). Nunca fiz nenhuma oficina literária ou curso. Meu contato com as letras era nulo. O processo de escrita foi bem difícil, muito na tentativa e erro. Comecei a escrever o livro para valer em janeiro de 2022 e terminei em janeiro de 2024. Foram dois anos, escrevendo quando dava, pois a residência médica tinha uma carga horária muito grande. Escrevia nos períodos de férias e nos finais de semana, mas o livro ficava muito parado. Quando eu retomava, não lembrava mais o que tinha escrito. Mas isso me ajudou a adquirir um olhar de leitor, que é o desafio do escritor: revisar e opinar sobre a própria obra. O fato de ter sido escrito de forma fragmentada me beneficiou nesse sentido. Eu esquecia o que havia escrito, voltava, repensava, apagava, recomeçava. Como escritor iniciante, sem experiência ou formação, foi um trabalho amador, quase artesanal, mas fui aprendendo com o tempo e com a literatura que consumia.

Que livros você lia? Tem algum autor ou autora que foi mais marcante nesse período?

Comecei a consumir muita literatura contemporânea brasileira, livros da década de 2010, 2020. Através desse contato, aprendi novas formas de contar histórias e de apresentar ideias que eu não conhecia antes. Entre eles, ‘Torto Arado’, de Itamar Vieira Junior. O que me chamou atenção foi a maneira como ele não teve medo de tocar em pautas políticas, fala muito sobre a questão agrária. E acho que trouxe isso para ‘Sangue Neon’. Embora seja um romance, uma ficção, ele também aborda a construção do SUS, a luta pelo direito à saúde. Aprendi, com essas leituras, a fazer um livro que também fosse politizado, conciliando a literatura com essas pautas.

Você disse que é importante que as gerações mais novas conheçam mais sobre a epidemia, e o romance é uma boa ferramenta para isso. Nesse sentido, percebe que estigmas sobre a Aids seguem perpetuados?

Esse assunto está longe de ser superado e de deixar de ser um tabu. Hoje, temos um tratamento muito eficiente, que permite à pessoa viver sem o vírus circulando no corpo. Isso é uma conquista enorme. Mas, apesar de extraordinário, acabou gerando uma espécie de silêncio. As pessoas não querem mais falar sobre isso, poucas falam. Como se pode viver normalmente com o vírus, muita gente escolhe o silêncio, e isso é um direito. Contudo, esse silêncio geracional traz um lado ruim. Quando não se fala sobre algo, permite-se que cresçam mitos e opiniões sobre ele. 

A era atual do HIV é uma era de sucesso em tratamento, mas ainda é um assunto que gera desconforto. Muita gente sofre ao se expor, ao falar. E a desinformação está presente até mesmo entre profissionais de saúde. Muitos médicos e enfermeiros são preconceituosos, com ideias absurdas que não deveriam existir em quem trabalha na área. Eu presenciei diversas situações em unidades de saúde, profissionais falando e insinuando coisas que não imaginaríamos ouvir a essa altura. Acho que temos que falar sobre o assunto com a maior clareza possível, destacando sempre nossos avanços, mas lembrando o quanto custou chegar até aqui. Não podemos repetir os erros; a história está aí para isso, e devemos aprender.

Você mencionou ainda o aspecto social da doença, que é naturalmente biológica, mas com uma repercussão social muito evidente, inclusive com um incremento da violência, sobretudo homofóbica e transfóbica. O quanto esse tema ainda aparece e persiste?

No contexto da grande sigla LGBTQIA+, que é vasta e diversa, o que une essas letras é o contexto da violência. Esta é a característica comum. A violência e a perseguição, a segregação, estiveram presentes desde os primórdios da nossa sociedade e é um desafio que, vira e mexe, temos que encarar. Às vezes, há um suspiro, a sensação de que estamos avançando como sociedade, com alguma lei em prol dos direitos, mas parece que nunca chegamos lá. Acredito no poder da ficção para moldar uma opinião e mostrar uma realidade. O livro tem esse papel. Mostro exemplos claros, como a ‘Operação Tarântula’, em São Paulo, uma operação quase sistematizada pelo Estado que visava perseguir e eliminar travestis das ruas com o pretexto de ser um gesto sanitário. Mas é um pretexto que preconceituosos usam para justificar seus atos violentos. Precisamos saber separar as coisas e entender como combater isso. Uma forma que encontrei foi contar uma história.

Apesar de tudo, o livro traz uma mensagem de solidariedade, de construção de uma comunidade.

Um dos pontos principais do livro é mostrar a grande desunião que existia na época do surgimento do vírus. Havia a comunidade travesti, a comunidade gay, os espaços GLS, mas, na verdade, não havia articulação entre eles. Inclusive, havia hostilização. Muitas baladas GLS da época, em grandes cidades, proibiram a entrada de travestis. Meu objetivo com o livro é mostrar que a força está na capacidade de mobilização e, quando uma tragédia como essa acontece, a união é fundamental. É isso que ocorre na história: uma travesti, sempre muito hostilizada, transforma sua pensão em um centro de acolhimento para todos que precisam. Comissários de bordo, que antes não tinham relação com travestis, começam a trazer medicamentos do exterior. Esses laços, criados e moldados pela violência, também trazem o lado de formar uma comunidade que, em tese, não faria sentido, mas que nos une pela violência. Hoje, o que vemos são retrocessos, como a tal Aliança LGB (sem o T), uma aliança internacional que prega a desunião – um motivo a mais para encararmos isso como um problema atual. É preciso reforçar sempre a importância do apoio mútuo, da luta coletiva. Avanços como as leis de garantia ao tratamento do HIV, de garantia dos direitos LGBT, não foram dados. Tudo foi à custa de muita luta comum, enquanto a desunião custa vidas – e o HIV foi um exemplo disso, como mostro no livro.

E agora, depois desse sucesso, o que vem pela frente?

Tenho um livro de contos praticamente pronto. Estou conversando com algumas editoras e espero lançá-lo no próximo ano. Quero continuar escrevendo. ‘Sangue Neon’ foi uma estreia muito feliz, e me sinto motivado a seguir esse caminho. 

FICHA TÉCNICA:
Título: Sangue Neon
Autor: Marcelo Henrique Silva
Editora: Faria e Silva (Grupo Alta Books)
Páginas: 176
Preço: R$ 38,90 (e-book) | R$ 56,90 (Livro físico)

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