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Estado de Minas INTERIOR | SEGURANÇA

Visitamos um presídio em Itaúna-MG que é referência no Brasil

Lá não há superlotação e são os próprios condenados que tomam conta do lugar


postado em 16/03/2017 15:05

Apac de Itaúna-MG: recuperandos podem trabalhar, participar de oficinas e ter acesso ao seu processo penal (foto: Alexandre Rezende/Encontro)
Apac de Itaúna-MG: recuperandos podem trabalhar, participar de oficinas e ter acesso ao seu processo penal (foto: Alexandre Rezende/Encontro)
Todos os dias, Tiago Ismael Silva, de 27 anos, acorda às seis da manhã. Depois de um banho quente, faz oração, toma um café preto, come pão com manteiga e sai para a labuta. Mas poucos metros o separam de seu posto de trabalho. Tiago é porteiro da Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (Apac) de Itaúna, na região Central do estado. O rapaz é um dos 176 homens, chamados de recuperandos - e não detentos ou presidiários - que cumprem pena na unidade que virou modelo para o país e o mundo. Só no estado há 39 Apacs, que são cuidadas pelos próprios condenados, dispostos a saírem de vez da marginalidade. "Vejo a rua todos os dias. Seguro as chaves do portão, mas não penso em fugir. Estou algemado pelo coração", diz Tiago, que está no regime semiaberto há quase quatro anos.

Na Apac de Itaúna, a primeira do estado, inaugurada em 1997, os recuperandos se dividem em três regimes: fechado, semiaberto e aberto. A rotina é a mesma para todos e não há divisão por delito cometido. Até porque, como diz uma das inúmeras frases pintadas nas paredes da unidade, "Aqui entra o homem e o delito fica lá fora". "Os recuperandos são chamados pelo nome. Eles não são apenas números", afirma Wellington Alves de Sousa, inspetor de metodologia da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (Fbac), entidade responsável pela implantação do método, criado pelo advogado Mário Ottoboni, em 1979, em São José dos Campos (SP). Wellington fez uma clara referência às penitenciárias tradicionais, onde os detentos são identificados por números e todos vestem uniformes. Na Apac, os recuperandos usam roupas comuns e não são obrigados a raspar o cabelo.

Wagner da Silva Rodrigues, de 29 anos, vai deixar a Apac em julho:
Wagner da Silva Rodrigues, de 29 anos, vai deixar a Apac em julho: "Aprendi muito aqui. Quem diria que isso seria possível durante o cumprimento da pena?" (foto: Alexandre Rezende/Encontro)
A comparação com o sistema penitenciário convencional é constante e impossível de não ser feita. Jackson Júnior Martins, de 27 anos, está há quatro meses na unidade de Itaúna, no regime fechado. Como reza a cartilha do método Apac, os recém-chegados, como o rapaz, têm oficinas de Laborterapia, destinada a trabalhos manuais. "Aqui sou acolhido, de fato. Temos a oportunidade de recomeçar a vida", afirma Jackson, depois de terminar mais um de seus trabalhos, um barquinho de madeira. De acordo com a Fbac, o índice de recuperandos que volta a praticar crimes é de 15%, enquando no sistema comum é de 60%. A última fuga em Itaúna aconteceu há 15 anos.

No corredor do regime fechado, as celas são limpas e organizadas. Em nada lembram a superlotação das penitenciárias, sempre prestes a explodir em rebeliões ou motins, como aconteceu em janeiro em quatro estados brasileiros. No final desse corredor há o que seria a solitária, chamada de cela-forte, cuja ventilação é restrita. Ela é usada como capela e, diferente das outras, está sempre aberta.

Nas celas: limpeza e organização são critérios para os recuperandos receberem benefícios como ter mais tempo de TV e ligações para a família(foto: Alexandre Rezende/Encontro)
Nas celas: limpeza e organização são critérios para os recuperandos receberem benefícios como ter mais tempo de TV e ligações para a família (foto: Alexandre Rezende/Encontro)
Entre 6h e 22h, os recuperandos não podem ficar nas celas, apenas em casos especiais como de doença ou por exigência da direção. Nesse intervalo, os homens se dividem em trabalhos na horta, com espécies nativas e frutíferas; fábrica de blocos de cimento; serralheria e carpintaria; montagem de peças de veículos; e panificadora, além de outras atividades que incluem a manutenção da unidade, como é o caso do recuperando e porteiro Tiago.

Todo esse trabalho não é convertido em remuneração, mas em remissão de pena. Cada três dias trabalhados significa um dia a menos na prisão. É o caso de Wagner da Silva Rodrigues, de 29 anos, que atua na horta e vai deixar a Apac em julho. "Aprendi muito aqui. Quem diria que isso seria possível durante o cumprimento da pena?", diz. Rangel Nogueira, de 37 anos, há seis na Apac de Itaúna, atua na serralheria e se diz pronto para recomeçar a vida. "Cheguei aqui sem saber ler e escrever. Hoje, estou no 7º ano", afirma.

Wellington Alves de Sousa, da Fbac:
Wellington Alves de Sousa, da Fbac: "Os recuperandos são chamados pelo nome. Eles não são apenas números" (foto: Alexandre Rezende/Encontro)
Diante da ausência de carcereiros ou agentes penitenciários, além da necessidade de não terceirizar serviços, cada recuperando custa 853 reais por mês. Em uma prisão tradicional, o detento custa 2,5 mil reais ao Estado.

Maurílio Pedrosa, gestor do Instituto Minas pela Paz, que reúne 40 empresas parceiras com a missão de reintegrar egressos do sistema prisional à sociedade, ressalta que as Apacs dão dignidade aos apenados. "Os recuperandos perdem o direito de ir e vir, mas não o de serem pais, tios ou irmãos", diz Maurílio, que ainda destaca o preconceito em relação aos recuperandos quando deixam as unidades. "Por isso, estamos sempre em constante aproximação com as empresas e em busca de novas parcerias", diz. Quase 1,2 mil egressos das Apacs do estado já foram reinseridos no mercado de trabalho entre 2009 e 2016, por intermédio do instituto.

Rangel de Souza, de 37 anos, na serralheria:
Rangel de Souza, de 37 anos, na serralheria: "Cheguei aqui sem saber ler e escrever. Hoje, estou no 7º ano" (foto: Alexandre Rezende/Encontro)
Mas para Victor Neiva e Oliveira, sociólogo e um dos pesquisadores do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o sistema Apac não pode ser considerado solução para o sistema penal. "Trata-se de um modelo alternativo de prisão, mas que não deixa de ser uma unidade carcerária", diz. Apesar de citar aspectos positivos da Apac, como a taxa de ocupação adequada e o fato de as unidades serem mais baratas que o modelo convencional, o pesquisador diz que o Estado deveria atacar os motivos que levam pessoas para as cadeias. "Cerca de 40% dos 600 mil presidiários do sistema comum são provisórios", afirma.

Tiago, o porteiro, apesar de estar a um passo, literalmente, da tal liberdade, diz que, comparada a outras prisões, se sente livre na Apac. "Aqui posso estudar, ter uma alimentação digna e receber minha família sem revistas constrangeadoras", diz Tiago, a poucos minutos de se despedir da reportagem e fechar o portão.

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