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Estado de Minas EDUCAÇÃO

Pediatra fala sobre a importância da volta às aulas presenciais

Carolina Capuruço afirma que, em seus 17 anos de carreira, nunca fez tantos encaminhamentos a psiquiatras como agora, na pandemia. Ela critica a postura do governo em relação às escolas em Minas, fechadas desde março do ano passado


postado em 09/04/2021 10:10 / atualizado em 09/04/2021 14:27

(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
No último dia 18 de março, Belo Horizonte completou um ano com todas as suas escolas fechadas, tanto as da rede pública quanto da rede privada. É uma marca singular. Dados da Unesco para a educação em tempos de pandemia mostram que, nas cidades mundo afora, em algum momento as escolas foram reabertas, mesmo que um novo fechamento voltasse a ocorrer em períodos de maior transmissão do novo coronavírus. Em Minas Gerais, 1,5 mil médicos (pediatras, neuropediatras, psiquiatras e infectologistas, entre outras especialidades) assinaram manifesto a favor que as escolas sejam "as primeiras a abrir e as últimas a fechar". Uma das signatárias do documento é a médica pediatra, cardiologista, intensivista e mestre pela UFMG Carolina Capuruço. Para ela - que é mãe de duas crianças, de 9 e 12 anos de idade - as escolas devem ser reabertas em um movimento híbrido, seguro e gradual para atender principalmente a necessidade daqueles que mais precisam. Carolina diz que os médicos se preocupam com questões que afetam mais de 470 mil crianças e adolescentes só em BH, como adoecimento infantil, crescimento da violência e criminalidade e evasão escolar. Há ainda os riscos a que são expostas crianças que ficam sozinhas em casa ou em creches montadas sem protocolos de higiene ou segurança com objetivo de atender a demanda de famílias que precisam trabalhar.

Na sua opinião, por que as escolas demoram tanto para abrir no Brasil e, ainda mais, em Minas Gerais e em Belo Horizonte?

Sinceramente, não sei. Diante de danos reais e inequívocos, a alegação de precaução ou prevenção não pode ser utilizada. Por que não se adotam todas as providências necessárias para se assegurar, de forma prioritária e imediata, o direito fundamental à educação? Países da África, Ásia, Europa, América e Oceania mantêm suas escolas abertas ou assumem uma postura de que a escola é a última a fechar e sempre a primeira a abrir, colocando a educação como pilar estrutural da sociedade, da luta contra a pandemia e da recuperação das sociedades no futuro. Ao longo desses 12 meses, ainda ouvimos as mesmas desculpas: falta de tempo, de dinheiro e de estruturação. O fechamento das escolas, que deveria ser temporário e excepcional, tornou-se permanente e o último serviço a ser priorizado, infelizmente. Estamos constantemente em péssimas posições nos rankings de testes internacionais e agora, só em Belo Horizonte, abandonamos 471.084 crianças e adolescentes fazendo a educação por conta própria, muitas vezes sem supervisão ou com supervisão não treinada e inapropriada. Foram mais de 30 mil crianças que não se alfabetizaram no tempo certo e 79.636 crianças que não aprimoraram suas habilidades de matemática e linguística e que, certamente, terão prejuízos no processo de alfabetização.

Como fica a situação das escolas com o cenário de agravamento da pandemia e também do medo dos governantes, dos médicos e das famílias?

Devemos ter consciência de que, em períodos de pico, é necessário exacerbar as medidas de mitigação como o distanciamento social, a lavagem de mãos e o uso de máscara. Os grandes propagadores do vírus são os adultos jovens, e essa população deve ter absoluta consciência da importância de se adotar essas medidas. Não queremos a volta a qualquer custo. As premissas para que as escolas permaneçam abertas são: retorno facultativo (cada família sabe da sua realidade e devemos respeitar todos) híbrido e gradual (redução ou aumento do percentual de alunos por ambiente de acordo com a taxa de transmissão), boa estrutura ambiental e complacência das medidas de acordo com a avaliação contínua dos parâmetros e mudança das estratégias sempre que necessário. Se estamos em um período de risco altíssimo, que sejam fechadas para voltarem a avançar com segurança rapidamente quando esses índices melhoram.

Estou muito preocupada porque em 17 anos de consultório nunca fiz tantos encaminhamentos para psiquiatria. Nos últimos meses atendi mais que em todos esses anos casos de ideação suicida
Estou muito preocupada porque em 17 anos de consultório nunca fiz tantos encaminhamentos para psiquiatria. Nos últimos meses atendi mais que em todos esses anos casos de ideação suicida" (foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
Por que há tanta discordância sobre o tema?

Os médicos não discordam de que a escola seja essencial. Podemos discordar de quando começar ou como começar, e essa é uma discussão saudável. Nenhum infectologista acha adequado abrir estabelecimento não essencial e fechar a escola. Isso, vindo de um médico, é absurdo. As escolas não podem ficar em último lugar. Aqui, infelizmente, nós estamos depois de serviços não essenciais. No Brasil, a escola está depois de bebida alcóolica. Precisamos priorizar a saúde e a educação de crianças e adolescentes.

Em muitos países, as escolas foram prioridade na abertura e esse é um pedido de entidades como OMS e Unicef. O que se verificou nesses lugares? Houve crescimento da contaminação? No Brasil a epidemia aterroriza mesmo com as escolas fechadas...

Estudos do mundo inteiro, inclusive em países com menor desenvolvimento que o Brasil, mostram que a abertura das escolas não levou ao aumento das taxas de transmissão comunitária ou resultou em maior mortalidade. A comunidade escolar pode refletir a taxa de transmissão local, mas, definitivamente, não é a escola aberta com protocolos sanitários que impulsiona a disseminação do vírus.

Pesquisas apontam que a depressão e a violência doméstica cresceram no Brasil durante a pandemia. De que maneira esse cenário atinge as crianças?

Esse cenário atinge as crianças de todas as formas possíveis e imagináveis. Devemos lembrar que as crianças são vulneráveis, por sua condição de indivíduos em desenvolvimento, independentemente de sua condição social. As crianças são as principais vítimas de violência doméstica física, moral e sexual, infelizmente. Mesmo quando não atingidas diretamente, muitas vivenciam um ambiente violento 24 horas por dia, não têm o suporte da escola para relatar o ocorrido, não têm nenhum socorro além do ambiente domiciliar. Nesse contexto podem se tornar violentas ou desenvolver distúrbios psiquiátricos graves. Muitas vezes a escola faz esse papel de detectar que a criança vem sofrendo algum tipo de abuso ou violência. Muitas vezes, parte da escola esse diagnostico inicial.

Além do conteúdo acadêmico, quais os principais danos de ficar tanto tempo sem ir à escola?

O prolongamento do isolamento social e a falta de convivência com seus pares vem trazendo graves danos à saúde física e mental das crianças, o que vai muito além do conteúdo pedagógico interrompido. Principalmente para os menos favorecidos, o fechamento das escolas tem agravado a insegurança alimentar e a fome em nosso país. A vida social ativa que as crianças usufruem na escola tem impacto direto na construção da personalidade e no senso de identidade infantil. O afastamento dos amigos pode levar a sentimentos de depressão, culpa, baixa autoestima e raiva em muitas crianças. Além disso, as atividades escolares fornecem estrutura, ritmo e rotina na vida diária das crianças e jovens, contribuindo para estarem mais ativos fisicamente e passarem menos tempo em frente a TVs, videogames e celulares. Durante os períodos de fechamento das escolas, crianças correm maior risco de violência doméstica e perdem a rede de detecção, denúncia e apoio que a escola muitas vezes representa nestes casos. Fora as consequências a curto prazo, como o aumento das gestações e abortos na adolescência, a longo prazo o abuso sexual infantil contribui significativamente para o desenvolvimento de transtornos mentais e abuso de substâncias.

Como tem observado, na prática, em seu consultório, os danos que citou?

Em relação aos transtornos mentais, nós, médicos, já detectamos aumento significativo de ansiedade, depressão e das tentativas de suicídio em crianças e adolescentes - e, infelizmente, também dos casos consumados. Estou muito preocupada porque em 17 anos de consultório nunca fiz tantos encaminhamentos para psiquiatria. Nos últimos meses atendi mais que em todos esses anos casos de ideação suicida.

Sem dúvida, após a vacinação de idosos e pessoas com comorbidades que podem vir a se agravar com a Covid-19, os professores são essenciais e devem ser vacinados prioritariamente aos demais grupos
Sem dúvida, após a vacinação de idosos e pessoas com comorbidades que podem vir a se agravar com a Covid-19, os professores são essenciais e devem ser vacinados prioritariamente aos demais grupos" (foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
Como você percebe os prejuízos acadêmicos?

Em relação aos danos educacionais e acadêmicos, a disparidade sócio-econômico-cultural já existente aumentou absurdamente. Com aulas remotas, a dificuldade no acesso à internet e aos dispositivos de informática só acentuou o abismo educacional entre famílias mais abastadas e mais vulneráveis. E, mesmo para os poucos que têm acesso garantido à internet e aos computadores, nem todas as crianças dispõe de um adulto disponível e qualificado para acompanhá-la nas aulas on-line, o que se faz ainda mais imprescindível quanto menor é a criança.

Você falou em mais de 30 mil crianças em idade de alfabetização em Belo Horizonte. Como fica a situação desses meninos?

A faixa etária até 6 anos foi a mais afetada em termos de construção do desenvolvimento. Existe um fenômeno fisiológico, que acontece por volta dos 3 anos de idade, que é chamado "poda neuronal". Quando um bebê nasce, o cérebro desenvolve inúmeras ramificações neuronais para que a criança seja capaz de aprender as mais diversas habilidades. Mas, ali, por volta dos 3 anos, ocorre esse mecanismo do neurodesenvolvimento que faz com que o cérebro selecione os neurônios mais e os menos utilizados, eliminando aqueles que não vêm sendo desenvolvidos. Assim, nas crianças pequenas que vinham desenvolvendo determinadas habilidades e subitamente são privadas desse desenvolvimento, o cérebro entende que aquelas ramificações neuronais que não são mais utilizadas podem ser descartadas, correndo o risco de que aquela criança possa perder, para sempre, determinada habilidade. Além disso, crianças pequenas precisam da convivência com outras da mesma idade para aprender a dividir, ter comportamento social, respeitar regras, trocar experiências e construir sua identidade. E, de uma hora para outra, isso foi simplesmente abortado. E, o pior, sem nenhuma perspectiva ou proposta de retorno.

Muitos podem pensar: "mas antigamente a escola não começava tão cedo..."

Antigamente era diferente. Na época dos nossos avós, as famílias eram numerosas, conviviam entre si, havia o quintal, a rua, as trocas entre famílias. Hoje, a escola é imprescindível.

E quanto aos mais crescidinhos, do fundamental I, de 7 a 10 anos?

Em todas as faixas etárias observamos as alterações e danos que comentei. Nessa idade, crianças precisam brincar, correr, pular e compartilhar experiências sempre rodeadas de outras crianças. Os efeitos desse isolamento prolongado - e estamos falando de um ano! - são devastadores para o processo de aprendizado, conhecimento, habilidade social e formação da personalidade. A exposição exagerada a telas aumenta comprovadamente o risco de alterações visuais como a miopia, além de expor a criança à visualização de conteúdos inadequados, porém muito atraentes para os olhos e o cérebro imaturos, que podem causar alterações comportamentais graves, como distúrbios de sono, hiperatividade, agressividade e sexualização precoce.

E como vê os impactos do isolamento para os adolescentes?

Todos os danos são observados também em crianças mais velhas, porém, sem a proteção social da escola, os pré-adolescentes e adolescentes estão ainda mais expostos à violência física, sexualidade e gestação precoces, drogadição e envolvimento em comportamentos ilícitos, como o tráfico de drogas. Esta é uma realidade particularmente verdadeira para aquelas crianças e adolescentes de condições sociais menos favorecidas, que permanecem sozinhos o dia inteiro e muitas vezes estão nas ruas, já que, na imensa maioria das famílias, os pais já retornaram ao trabalho. Para alguns economicamente mais favorecidos, e que estão isolados em seus domicílios, a solidão tem levado ao desenvolvimento de transtornos mentais e psiquiátricos importantes, como depressão, ansiedade, ideação suicida, comportamentos de automutilação e abuso de substâncias. No ensino médio, particularmente, estamos lidando sobretudo com a evasão escolar de jovens que engravidaram, casaram, começaram a trabalhar e nunca mais retornarão para a escola. Isso traz um impacto negativo direto na capacidade profissional, social e financeira desses adolescentes, com consequências irreparáveis para a sociedade.

Na sua opinião, os professores deveriam entrar na lista de prioritários para a vacinação?

Sem dúvida, após a vacinação de idosos e pessoas com comorbidades que podem vir a se agravar com a Covid-19, os professores são essenciais e devem ser vacinados prioritariamente aos demais grupos. A educação exerce papel único e inquestionável para uma sociedade.

O que os pais devem explicar para seus filhos no momento de retorno às escolas? Quais as orientações mais importantes?

Os pais e responsáveis exercem um papel de protagonismo junto aos professores. A criança aprende a partir de exemplos. Elas são capazes de aprender muito mais facilmente do que nós, adultos, enraizados em nossos preceitos e preconceitos. As famílias devem ter conversa franca sobre as dúvidas e medos das crianças, mostrar a importância de se seguir regras, lavar as mãos, respeitar o próximo...

O que a levou a assinar o texto que pede a reabertura das escolas?

Eu me recuso a ficar em silêncio diante de tantos abusos e omissões. E não sou a única. Vários médicos, alguns pediatras como eu, outros neurologistas e psiquiatras, têm vivenciado situações de grande perigo para a vida das crianças e adolescentes e resolveram se unir em prol da saúde dessa população. Todos reconhecemos como complexo o debate em torno do equilíbrio entre os direitos fundamentais à vida, à saúde e à educação, mas insistimos em ressaltar que a suspensão das atividades escolares presenciais foi medida absolutamente excepcional e temporária, inicialmente adotada como necessária para o entendimento da doença e proteção coletiva. Contudo, estamos prestes a completar um ano de escolas fechadas. Mesmo diante das centenas de variantes já sabidas e daquelas ainda ignoradas, as medidas de mitigação são bem conhecidas e cabe-nos ensinar aos adultos que parem de transmitir para as crianças e os idosos, até que a vacina esteja disponível para todos, e não continuar com as escolas fechadas. A criança é um ser em situação de vulnerabilidade absoluta e se a sociedade não a proteger em sua integralidade, chegará em sua vida adulta marcada por vieses pessoais e sociais e irremediavelmente corrompida. Crianças não têm sindicatos, elas têm protetores: os pais e a família, mas também os professores e o médico pediatra, historicamente comprometido na defesa dessa população. E, por sorte, nem todos se acovardaram e tampouco se omitiram em defender quem ficou sem voz. Eu sou uma dessas pessoas.

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