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Estado de Minas ENTREVISTA

Os impactos da pandemia na relação entre empresas e funcionários

Advogada Carine Murta fala sobre o tema e afirma que a legislação trabalhista precisa ser modernizada


postado em 10/05/2021 00:53

A tendência é que, no futuro, questões pessoais de ritmo de trabalho possam ser mais respeitadas e adaptáveis
A tendência é que, no futuro, questões pessoais de ritmo de trabalho possam ser mais respeitadas e adaptáveis" (foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
Quando concluiu a faculdade de Direito, em 1999, na UFMG, Carine Cabral não teve dúvidas de que iria se especializar no direito do trabalho. Ela conta que assim que souberam de seu desejo alguns colegas de profissão questionaram sua escolha. "Diziam que era uma área de menor relevância", lembra. É claro que eles estavam enganados. Mas se as relações entre empresas e funcionários já eram de vital importância, se tornaram ainda mais diante de uma pandemia como a do novo coronavírus. Hoje, Carine é uma das profissionais da área mais prestigiadas do país e está abrindo, em sociedade, um novo escritório, 100% especializado na advocacia trabalhista empresarial. A pandemia, ela acredita, já está influenciando os rumos da profissão. "O home office veio para ficar", diz. Como a legislação não previa uma situação dessa magnitude, Carine afirma que empresas estão buscando o diálogo para resolver determinados imbróglios. No meio do furacão pandêmico, a especialista encontrou um tempinho para conversar com Encontro. Na entrevista a seguir, ela fala sobre os impactos da crise sanitária em seu ramo de atuação, o aumento de ações trabalhistas e o futuro da legislação.

  • Quem é: Carine Murta Nagem Cabral, 44 anos, casada, dois filhos

  • Origem: Belo Horizonte (MG)

  • Formação: Direito pela UFMG; mestre em direito pela PUC Minas, doutoranda em ciências jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa (Portugal); pós-graduada em direito do trabalho pela Universidade Gama Filho; pós-graduada em direito processual pelo IEC PUC Minas

  • Carreira: Autora de livro e artigos na área de Direito do Trabalho; advogada eleita na publicação "Análise 500" como uma das mais admiradas nacionalmente e em Minas Gerais na área trabalhista, por sete anos consecutivos, desde 2014. Atua em advocacia trabalhista empresarial e casos estratégicos, tendo clientes de diversas empresas nos segmentos de siderurgia, mineração, transporte, telecomunicações, infraestrutura, prestação de serviços, banco, dentre outros

ENCONTRO - Em março de 2020 o Brasil inteiro começou a ser impactado pela pandemia da Covid-19. De cara, as relações de trabalho foram atingidas. Quais as principais dúvidas que chegavam até você?

CARINE CABRAL - No início da pandemia, havia uma insegurança geral de todas as empresas sobre como iriam prosseguir, o que podiam esperar e como deveriam agir. Tudo estava muito incerto porque não sabiam exatamente quanto tempo seríamos afetados em nossas rotinas. As dúvidas, no início, eram a respeito do que as empresas podiam fazer dentro da legislação já existente para enfrentar os primeiros 15 dias de isolamento social e medidas restritivas.

Quais foram as primeiras medidas das empresas?

Férias, licenças remuneradas e compensações de banco de horas existentes foram medidas tomadas por muitas empresas em um primeiro momento. Passados esses primeiros dias, o governo passou a anunciar medidas de duração mais efetivas, já que a legislação trabalhista, até então, não concedia muitas opções seguras para o empregador. Assim, em um segundo momento, as dúvidas eram em como aplicar e implementar as medidas tomadas pelo governo como redução de salário e jornada, suspensão do contrato de trabalho, antecipação de férias, dentre outras.

Houve aumento de ações trabalhistas durante a pandemia?

Isso era uma possibilidade que se tornou realidade segundo dados do Tribunal Superior do Trabalho. Houve um aumento significativo de processos discutindo questões básicas como pagamento de verbas rescisórias, como multas de 40% de FGTS e aviso prévio aos trabalhadores desligados diante das dificuldades dos empregadores. Infelizmente, a expectativa é que esse número cresça ainda mais em virtude de estarmos assistindo, a cada dia, mais falências ou empresas em recuperação judicial. Outros temas estão se somando a esses, como ações em que se discute medidas de segurança implementadas pelas empresas etc.

Muito se fala que a pandemia vai deixar muitos legados. Na sua avaliação, quais serão os principais na relação trabalhista? O que veio para ficar?

Certamente, houve uma mudança significativa na forma de trabalho, como a questão do trabalho remoto ou em home office. Apesar da resistência inicial, o sistema de trabalho à distância se mostrou eficaz em diversos setores e segmentos de atividade, com reuniões virtuais e diminuição do volume de viagens. Muitos clientes meus já optaram por, mesmo após o término da pandemia, adotarem o sistema de home office, ao menos em alguns dias da semana, de forma definitiva. Para mim, essa é uma mudança que veio para ficar.

Há setores que foram mais impactados?

Certamente. De acordo com dados do Ministério da Economia setores como atividades artísticas, transporte aéreo, transporte ferroviário de passageiros, transporte interestadual e intermunicipal de passageiros, bem como setores de prestação de serviços como alimentação e hotelaria, fabricação de veículos automotores e fabricação de calçados foram fortemente afetados. Logicamente, somam-se a esses diversos outros setores que estão lutando para superar esse momento e manter os empregos.

A Legislação Trabalhista não previa uma situação como essa (pandemia), certo? Diante disso, há um aumento do número de casos resolvidos em comum acordo, uma vez que não há precedentes?

A legislação trabalhista possuía um tímido artigo, o 501, que previa a situação de força maior, entendida como todo acontecimento inevitável em relação à vontade do empregador e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente. Contudo, de fato, não havia previsão específica que pudesse solucionar os inúmeros problemas surgidos com a pandemia, essa é uma situação inesperada e não prevista. Nesse contexto, mais do que nunca, o diálogo e a negociação ou procedimentos de solução extrajudicial de conflitos como mediação, conciliação e arbitragem se tornaram e se tornam essenciais. Muitas soluções adotadas por empresas passaram justamente pelo diálogo com as próprias entidades sindicais que passaram a ter um papel fundamental na tentativa de buscar soluções alternativas para o enfrentamento deste momento.

Acredita que a Legislação Trabalhista deva ser alterada a partir do que estamos vivendo?

Estamos em movimento de flexibilização da legislação trabalhista, que é muito antiga, de 1943. A própria questão do teletrabalho não tem sido capaz de abarcar todos os contornos e peculiaridades que surgiram com a pandemia. Acredito que há uma tendência de mudança. A legislação trabalhista precisa ser modernizada, mas isso não depende apenas dos advogados.

Muitos têm se queixado de jornadas excessivas por causa do home office. Isso pode ser um problema no futuro para as empresas, com queixas judiciais? Que cuidados as empresas precisam ter para evitar processos?

Questões que envolvem o home office certamente deverão ser um ponto de atenção para as empresas. Para evitar queixas judiciais futuras, deve haver um cuidado especial das empresas para garantir que não haja jornadas extenuantes e que os empregados tomem todos os cuidados com a saúde, de forma geral. Um acompanhamento de perto, inclusive com cursos e treinamentos periódicos, é recomendável.

Receber telefonemas ou mesmo mensagens de WhatsApp da chefia fora do horário de trabalho pode gerar processos judiciais?

O Direito do Trabalho se funda no princípio da primazia da realidade, ou seja, cada situação específica precisa ser interpretada dentro de um contexto. Por exemplo, cargos de gestão ou de chefia não possuem jornadas controladas e, portanto, para esses níveis, telefonemas ou mensagens de WhatsApp em horários não corriqueiros não teriam a consequência de gerar uma condenação. Já para empregados sujeitos a controle de jornada, um cuidado maior é necessário pelas empresas. Logicamente, o simples recebimento esporádico de telefonemas ou mensagens não gera consequências maiores, até porque o empregado pode ignorá-los e retornar no dia seguinte, durante seu horário de trabalho. Mas, ao revés, se houver algo rotineiro e com obrigação de atendimento pelo empregado, pode haver o questionamento judicial e entendimento de que estaria ocorrendo um desrespeito ao período de descanso. Fala-se, atualmente, em direito à desconexão que é justamente o direito de haver uma certa desconexão com o trabalho nos tempos destinados ao seu descanso entre uma jornada e outra.

Há o caso da churrascaria Fogo de Chão que foi multada e obrigada a recontratar funcionários. Casos assim podem gerar insegurança jurídica para as empresas?

Como advogada trabalhista, respeito muito o Judiciário e o Ministério Público do Trabalho e, nesse sentido, sempre tenho muito cuidado e evito expor um julgamento individual sobre tal e qual decisão. O que vejo é que a situação vivenciada pela churrascaria Fogo de Chão gerou muita polêmica porque muitos não conseguiram entender a decisão judicial já que há uma previsão na lei, qual seja, o artigo 477-A da CLT, que permite desligamentos coletivos sem prévia autorização da entidade sindical. Há situações em que nós, advogados trabalhistas, realmente ficamos impossibilitados de dar uma orientação jurídica 100% segura para os clientes porque não temos certeza de como aquela situação específica será interpretada. Penso que o Direito do Trabalho, de um modo geral, ainda precisa caminhar no sentido de tentar dar uma maior segurança jurídica para todos os envolvidos.

Qual a diferença entre home office e teletrabalho?

A legislação atual vigente aborda o teletrabalho, que é o trabalho desempenhado preponderantemente fora das dependências do empregador. Ou seja, o empregado somente vai a empresa de forma excepcional e, para essa hipótese, a lei exclui o controle de jornada. Já a modalidade de home office, que acreditamos que perdurará de forma mais duradoura após o término da pandemia, é a possibilidade de que o empregado, em alguns dias da semana, por exemplo, trabalhe de casa por questões de comodidade, trânsito etc. Nessa circunstância, o trabalho pode ser realizado de forma híbrida, por exemplo, sendo alguns dias presencial e outros em casa. Para tal hipótese, se o empregado, por exemplo, bate ponto na empresa, mesmo nos dias em que trabalhar de casa continuará necessitando registrar suas horas de trabalho.

Funcionários em home office podem pedir ressarcimento de despesas como contas de luz?

A legislação atual que aborda o teletrabalho estipula que questões relacionadas à infraestrutura, equipamentos e mobiliário necessário para o trabalho remoto devem ser objeto de expressa previsão em contrato com o empregado. Logo, não exige o ressarcimento, pelo empregador, mas também não impede que seja estabelecido pelas partes. O que temos observado é que esse acordo tem, realmente, sido feito pelas empresas com seus empregados. Essa regra se aplica, a nosso ver, para a modalidade de home office, ou seja, não há a obrigação legal, mas nada impede que as partes estipulem o ressarcimento não só de gastos com energia elétrica como uma ajuda de custo para internet, etc.

Como fica a questão do banco de horas? É possível controlar o expediente dos funcionários estando em casa?

Aqui é necessário distinguir os empregados que exercem cargos de confiança e, portanto, não possuem jornadas controladas, dos que possuem jornada controlada. Para os que ocupam cargos de confiança, não há banco de horas porque não há controle de horas ou jornada. Já para os empregados submetidos à registro de jornada e que necessitam registrar o ponto, entendemos que em home office poderão ser aplicadas as mesmas regras do banco de horas aplicáveis para o trabalho presencial, lembrando que a lei atual possibilita que empregado e empregador estipulem um banco de horas semestral. O cuidado da empresa será a adoção de um sistema efetivo e correto de controle de horas, para evitar ser questionada futuramente.

As mudanças impostas pela pandemia podem obrigar empresas e empregados a rediscutirem a relação, que passaria de "venda de tempo de trabalho" para "produtividade"?

Acredito que esse será um movimento natural. Cada vez mais as chefias estão concluindo que interessa mais a produção e entrega do trabalho do que o tempo de trabalho propriamente dito. Outra flexibilização que acredito que será natural será em relação aos horários de início, pausa e término de trabalho. Penso que a tendência é que, no futuro, questões pessoais de ritmo de trabalho possam ser mais respeitadas e adaptáveis. Há aqueles que produzem muito de noite, outros de dia etc.

A pandemia vem provocando também o aumento da incidência de distúrbios emocionais como depressão, crise de ansiedade... Esse tipo de demanda ou de casos chegam até você?

Ainda não vivenciei nenhum processo judicial com esse tema em decorrência da pandemia e do modo de trabalho durante a pandemia. Entretanto, já observo uma preocupação dos setores de Medicina e Segurança do Trabalho das empresas no sentido de cuidarem e acompanharem mais de perto a parte emocional de seus empregados. Penso que esse é um fator de atenção que não somente as empresas devem ter, mas as escolas com seus alunos, os pais em relação aos seus filhos... A meu ver, somente saberemos os reais impactos da pandemia no psicológico das pessoas, em especial das crianças, a médio prazo. Precisamos estar atentos e cuidando uns dos outros.

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