Publicidade

Estado de Minas SUPERAÇÃO

Pacientes que tiveram suas vidas devastadas pela Covid-19 relatam como é lutar contra as sequelas

Eles contam, ainda, o que aprenderam ao receberem o que chamam de "segunda chance"


postado em 08/11/2021 23:42 / atualizado em 10/11/2021 12:49

(foto: Pádua de Carvalho/Encontro e Uarlen Valério/Encontro)
(foto: Pádua de Carvalho/Encontro e Uarlen Valério/Encontro)
Primeiro a Covid-19 rouba os sentidos, para depois esvair o significado da vida. Subitamente, o ar já não chega com plenitude aos pulmões e o "simples" ato de respirar se torna uma questão de sobrevivência. O paladar perde o gosto dos sabores e não distingue mais qual alimento é levado à boca. O olfato se esquece dos cheiros e aromas. A experiência de quase morte valida uma grande certeza: a vida tem prazo certo para acabar - apesar de não estarmos preparados para morrer. Ainda que especialistas se debrucem sobre dados, o que leva alguns a não se contaminarem ou a ter sintomas leves, e outros a desenvolverem o quadro grave da doença, segue sendo uma grande incógnita. Muitos casos, se enquadram na exceção.
 
E o que em um primeiro momento parecia distante, coisa de país do estrangeiro, já matou mais de 600 mil brasileiros. Com eles também morrem diariamente - em vida - milhares de pais, mães, irmãos, esposas, filhos… Os impactos sociais, econômicos, culturais e políticos já sentidos na pandemia, e os que  ainda estão por vir, são incalculáveis. Felizmente, em cerca de 85% dos casos a doença não ultrapassa a sua forma mais leve. O que explica o fato de o Brasil registrar a marca de mais de 20 milhões de recuperados, segundo dados do Ministério da Saúde. "Em crianças, adolescentes e jovens, na imensa maioria das vezes, o quadro da  doença é autolimitado. Não se agrava", diz Cláudia Murta De Oliveira, médica infectologista do serviço de controle de infecção da Santa Casa BH.

Os que tiveram suas vidas devastadas pela doença, e sobreviveram para contar a história, relatam as amargas lembranças do contágio e os rastros deixados pelo vírus, que não se atém às sequelas físicas. "Os pacientes sofrem com muita angústia, ansiedade, depressão. O medo da morte e, ao mesmo tempo, de como será se sobreviverem, afeta diretamente o equilíbrio psicológico e a saúde emocional", explica a psicóloga Eginia Teixeira, da clínica médica e hematologia do Hospital das Clínicas da UFMG. Encontro ouviu depoimentos de pessoas que, em menos de dez dias, se viram incapazes de sustentar o peso de um único aparelho celular. São jovens, adultos e idosos, em pleno vigor de suas atividades, que foram levados ao limite da fragilidade humana, seja em Centros de Terapia Intensiva (CTIs) seja enclausurados em casa. Em um cenário de sombras e incertezas, um arremesso de luz lhes deu uma segunda chance. Confira histórias - e os muitos aprendizados - de oito desses sobreviventes.

Amor que cura

(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
Vencer o medo das vacinas, era uma das grandes batalhas da vida do empresário Francisco Regis Lobato, de 75 anos. E acabou lhe saindo caro. Cidadão honorário de Belo Horizonte, há 42 anos mantém sua ótica, a Perfect Óculos, no mesmo endereço, na região da Savassi. Da Covid-19, trouxe um aprendizado: não há dinheiro no mundo que pague pelo amor verdadeiro. Habituado ao trabalho, quando está na lida diária nem vê o tempo passar. Tempo que por muitos anos deixou de viver ao lado daqueles que lhe são caros. Com 47 anos de casamento, não tem dúvidas: "Ficaria mais 47 anos casado com minha mulher, a Analúcia. Ela é tudo na minha vida". Quando descobriu que havia contraído o vírus, em julho deste ano, sua vez de vacinar já havia passado. "Sempre passei muito mal, então fui empurrando". Exceção à regra, sabe bem de onde veio a doença. Não foi do trabalho, onde todos sempre adotaram os protocolos sanitários necessários. Foi de um sobrinho, em uma festa familiar, com pouco mais de dez pessoas. Assintomático, o jovem de 25 anos acabou transmitindo a Covid-19 para todos os presentes, exceto para Analúcia e a sogra de Régis, de 95 anos, ambas já vacinadas. "De todos, eu sofri mais, acredito por ser o mais velho dos atingidos". Fumante por 60 anos, atribui à tragédia um benefício: "Consegui parar de fumar". Quando seu teste deu positivo, já sentia um pouco de cansaço. Mas foi só ter a confirmação para se sentir ainda pior e o quadro evoluir. O lado emocional, diz ele, influencia demais. Contratou um médico e passou a ser cuidado em casa, isolado em um quarto. Foram cinco dias sem comer e sem dormir. A mulher, dedicada, não abriu mão de lhe fazer a vigília. O empresário se recorda de que foram dias difíceis, mas que o levaram a algumas reflexões. Para alcançar a cura, era preciso aceitar que estava doente e, principalmente, desejar viver. Passou a reavaliar as suas prioridades e buscou amparo na ciência da logosofia, que defende o autoaperfeiçoamento. "É claro que também acredito muito em Deus. Para mim, o seu conhecimento está escrito nas leis universais e não em qualquer religião." Sentiu-se revigorado e desejou ser uma pessoa melhor. Entendeu que os bens mais valiosos são os imateriais. Se pudesse dar um conselho aos mais jovens, diria que a doença é "real" e que é preciso ser prudente para não prejudicar os outros. Sobre o tempo? Quer aproveitá-lo para se dedicar a pequenos prazeres, entre eles estar ao lado da família, ler um bom livro, ouvir o silêncio e viajar.

Sem medo de viver

(foto: Uarlen Valério/Encontro)
(foto: Uarlen Valério/Encontro)
Para a fotógrafa Liliana Queiroz, de 49 anos, a sutileza da vida pode ser vista nos detalhes. Com olhar apurado, sempre levou a seus clientes a beleza daquilo que nem todos conseguem ver. E foi o seu jeito leve de ser que a fez superar os perrengues da Covid-19. Para ela, a doença não deve ser romantizada. É pesada! Mas existem formas de se reinventar e seguir em frente. Quando ainda não se sabia ao certo que bicho era essa tal de pandemia, ela já ouvia notícias do que acontecia no mundo afora. Naquela época, as informações ainda eram cruzadas e as festas e eventos seguiam sem muitas alterações. No dia 14 de março de 2020, fotografou um casamento. "Eu me lembro de já estar neurada e sentindo muito medo". No dia 16, sentiu os primeiros sintomas, que também não estavam bem especificados. O resultado do teste de PCR, feito no dia 17, saiu três dias depois. Positivo para Covid-19. "Os médicos me mandaram ficar em casa. Não me passaram nenhum medicamento além de tylenol ou novalgina. Se fosse a minha hora, tinha ido", acredita. De perfil dinâmico e com boa saúde, de repente se viu tão fraca a ponto de utilizar cadeira de rodas. Além do pavor da decadência física, a ideia de transmitir o vírus para suas duas filhas e o marido, a assombravam. "Eu deixava de pedir comida, água, para evitar qualquer tipo de contato. Acabei desidratando, vomitando muito". No oitavo dia da doença, achou que ia morrer. Voltou ao hospital para novos exames. Via tanto pavor no olhar das pessoas ao se aproximar, que a sensação chegou a ser tão ruim quanto a doença. "Do nada, me vi isolada. Ninguém se aproximava." Para ela, a angústia e ansiedade de ficar enclausurada em seu quarto eram tão maléficas quanto o vírus. Perdeu o paladar, o olfato, mas não perdeu as esperanças. Após 12 dias de isolamento, sua filha caçula, Isadora, bateu na porta do seu quarto dizendo que não estava se sentindo bem. Comemorou os 15 anos de idade com o diagnóstico confirmado para a Covid. Liliana, então, tirou forças de onde só as mães conseguem, para cuidar da filha. Vaidosa, viu mechas inteiras dos seus cabelos caírem em suas mãos. Mesmo assim, agradece por não ter ficado com alguma sequela. "Cabelo nasce de novo." A experiência dramática a deixou mais forte. "Não sinto mais medo. Voltei para a vida".

Na linha de frente da batalha

(foto: Uarlen Valério/Encontro)
(foto: Uarlen Valério/Encontro)
Para os profissionais da área da saúde, que desde o início da pandemia de Covid-19 no Brasil, em fevereiro de 2020, estiveram na linha de frente lutando contra um inimigo invisível e totalmente imprevisível, a morte se tornou coisa rotineira mas, nem por isso, menos devastadora. À época responsável pela coordenação da Clínica Médica e do CTI da Covid no Hospital da Baleia, o cardiologista Levindo Carvalho, de 39 anos, descobriu, a duras penas, como é estar na condição de médico e de paciente. "Para nós, as angústias têm sido várias. Desde o medo de ser infectado e transmitir o vírus para nossos familiares, à aflição do confinamento social, além da pressão e desgastes diários", diz ele. Como médico, mais do que nunca foi necessário controlar suas próprias inseguranças para prestar socorro e levar alento às vítimas da pandemia. Não bastava apenas ter técnica. Era preciso ter empatia. "Famílias com boa condição financeira chegavam a nos perguntar se não havia mais nada que pudesse ser feito. Acabavam compreendendo que não se tratava de uma questão de dinheiro." No auge da pandemia, a vida lhe escapava por entre os dedos, e não havia muito o que fazer. "Nunca tínhamos enfrentado nada com tamanho impacto e dimensão." Mesmo com todos os protocolos sanitários adotados, o caos gerado pela demanda intensa nos hospitais levou muitos profissionais da saúde ao contágio. Em meados do ano passado, no auge da Covid-19 em Belo Horizonte, a confirmação: o médico havia sido infectado. Sem precisar ficar internado, avaliou, em si mesmo, cada evolução do quadro. Dos 14 dias de isolamento em casa, trancado dentro de um quarto, os cinco primeiros foram os piores. "Sentia um cansaço descomunal e tinha muita febre alta. Não conseguia sequer conversar direito". Nos dias seguintes, pequenas melhoras possibilitaram que, mesmo à distância, o médico auxiliasse colegas que precisaram ser intubados. Meses depois, já no cargo de Diretor Clínico do Baleia, Levindo Carvalho guarda uma memória doída. Muito apegada, Camila, sua filhinha de 2 anos de idade recém completados, batia à porta do quarto chamando pelo papai. Mas ele não podia abrir. "São coisas que tocam demais o coração da gente. Isso me deu ainda mais forças para viver." A pequena nasceu em setembro de 2019. Em novembro de 2020, outro motivo para celebrar. O nascimento de Leonardo, o segundo filho de Levindo e Sabrina. Agora, com os hospitais mais vazios, o cardiologista se dedica ao estudo das sequelas pós-Covid para a reabilitação daqueles que, a exemplo dele, tiveram uma segunda chance para viver.

Bom humor, apesar de tudo

(foto: Uarlen Valério/Encontro)
(foto: Uarlen Valério/Encontro)
"Se era para morrer, que fosse com um mínimo de dignidade", diz o administrador Patrick Feibelmann, de 50 anos (na foto, com a mulher, Karine, e o filho, Axl Lucca). Pai velho, como gosta de dizer, tudo o que deseja é ver o filho de 5 anos crescer. O bom humor está presente na narrativa de sua história, mesmo ao relatar momentos cruciais vividos após testar positivo para a Covid-19. Internado no dia 1° de março de 2021, conta como brigou para entrar e depois, para sair. Acabou entendendo que brigava pela vida. Dos 15 dias que permaneceu internado, 10 deles no CTI, guarda memórias que remontam a um filme de ficção. Para seu azar, a trama era real. Doze quilos mais magro, descobriu que é preciso estar atento aos detalhes, e valorizá-los. Chegou a um ponto difícil de aceitar: o peso do celular era maior que suas forças físicas. Foi em um domingo que tudo começou. Acordou se sentindo cansado e com muita dor de cabeça. "Estava tudo estranho, parecia um resfriado." Não demorou muito e a respiração foi ficando mais difícil, a febre persistente. Decidiu ir para o hospital. O teste usado para detectar a presença do vírus foi o PCR, feito através da coleta de secreção do nariz. O resultado saía somente em 48 horas, tempo que ele sentia não dispor naquele momento. "Na segunda, entrei em contato com uma amiga médica que me orientou a voltar lá. De novo, não queriam me internar. Falei logo que dali eu não saía", conta Patrick. Sua mulher também já apresentava os sintomas da doença e o filho tinha tido febre. Não queria arriscar piorar em casa. Enfim internado, parecia ter entrado em outra dimensão. Profissionais paramentados, "tipo astronautas", lhe colocaram máscara para melhorar a respiração. Apesar do alívio, o ar ainda lhe faltava. Foi transferido para outro departamento: o CTI. O administrador lembra-se vagamente dos calafrios, dos exames dolorosos realizados repetidamente e da perda gradativa da relação tempo e espaço. "Tive a sensação de parar de existir. Eu não tinha forças nem para reclamar." Enquanto manteve a consciência, as coisas ganhavam ares mirabolantes. Depois, o apagão. Quando foi "ressuscitado", com quase nenhuma "dignidade", contratou um assistente para lhe ajudar. Reclamou da comida, do fisioterapeuta que o acordava às cinco da manhã e da estadia, que a seu ver já estava longa demais. Começou a saga para sair. De volta para casa, foram mais 45 dias usando oxigênio. Sete meses depois ainda tem problema pulmonar, a voz é fraca e os exames sempre levam "bomba". "Depois que percebemos que ganhamos uma hora extra, repensamos muitas coisas. Uma delas, como é bom estar em família!".

Um dia de cada vez

(foto: Uarlen Valério/Encontro)
(foto: Uarlen Valério/Encontro)
Após os impactos físicos e emocionais deixados pelo vírus SARS-CoV-2 na vida do clínico geral Cássio Jabour Francisco, de 66 anos, ele não se atreve a pensar no depois. Seguindo o pensamento do famoso escritor russo Tolstói, para ele não existe um momento mais importante do que o agora. "Tomei maior consciência da nossa vulnerabilidade e deixei de fazer planos", diz. Semelhante à maioria dos infectados, o médico não sabe precisar como ele e a mulher, Cida, foram contaminados. Só lamenta o fato da companheira de 26 anos de estrada ter sido afetada fatalmente, mesmo sendo "neurótica" na adoção dos cuidados preventivos. "Pegamos a Covid em março deste ano. Ela manifestou os sintomas primeiro e logo em seguida, eu também." Dinâmica, alegre e sem nenhuma comorbidade, Cida apresentou, à princípio, um quadro leve da doença. Aos 60 anos de idade e já aposentada, não abria mão de uma boa festa e nem de fazer planos. "Estava sempre sorrindo, e como esse sorriso me faz falta." Cássio, no entanto, sentiu mais os sintomas da doença, com grave risco de ter trombose. Tanto que somente a ele foi orientado fazer acompanhamento pneumológico. No 28° dia após o contágio, Cida acordou às duas horas da manhã com falta de ar, chiado no peito e confusão mental. Faleceu 48 horas depois. Naquele período, ainda não se falava em síndrome pós-Covid no Brasil. O motivo da morte foi uma miocardite, inflamação do músculo cardíaco. Duas semanas após sua morte, um jornal americano publicou artigo sobre o tema, afirmando que a síndrome pode ocorrer até seis meses após a Covid-19, atingindo vários órgãos. "Somos educados para viver, e eu como médico fui preparado para sustentar a vida. Não estamos preparados para a morte." O psiquiatra Diego Tinoco explica que a Covid-19 tem gerado vários transtornos, entre eles depressão, estresse pós-traumático e síndrome do pânico. "A saúde é um serviço de integração entre todas as áreas, e o acompanhamento multidisciplinar é fundamental para recuperar a qualidade de vida desses pacientes", diz. Seis meses depois, Cássio tenta aceitar o luto e se adaptar à sua nova realidade. Mais difícil do que lidar com a Covid-19, diz ele, é se acostumar à solidão. É no amor da família e no amparo dos amigos que o médico se apoia. O conforto também vem dos netinhos que o alegram, um caçula, do seu filho do primeiro casamento, e dois mais velhos, filhos da sua enteada. "Busco valorizar mais as pessoas, aumentar o amor ao próximo e seguir em frente".

A saga de uma mãe

(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
A notícia de que, em seu ventre, uma nova vida seria formada, surpreendeu a personal trainer Fernanda Elizabete Domingos Alcântara, de 35 anos. A surpresa se deu não porque rechaçasse a ideia de dar à luz novamente - ela já é mãe de Leandra, de 7 anos - , mas, sim, pelo fato de que um mês antes, em agosto de 2020, havia sido diagnosticada com Covid-19. "Fiquei cinco dias internada, depois me enviaram para casa, mesmo ainda sentindo muito cansaço e desconforto abdominal." Superada a doença, e o susto, deu início aos preparativos para a chegada do bebê. Na vigésima oitava semana de gestação, um novo diagnóstico lhe abriu o chão. Em abril de 2021, testou novamente positivo para o novo coronavírus. "Peguei da minha mãe, que havia ficado 15 dias internada no CTI, mas já se recuperava." Emocionalmente abalada e com a saturação baixa, acabou sendo internada. Grávida e portadora de bronquite asmática, sabia que corria sérios riscos. Em meio a um turbilhão de emoções, foi encaminhada a um quarto junto a outras duas gestantes. "Uma delas tinha pego o vírus de alguém da região norte do país. Creio que, da segunda vez, eu tenha sido vítima da variante amazonense". Para os médicos, só havia uma solução: encaminhá-la para o CTI. Era preciso resguardar a vida de mãe e filho. "Eu mesma pedi para ser entubada. Queria salvar o meu bebê." Foram 21 dias de intubação, todos na posição prona que mantém o paciente de "barriga para baixo" para melhorar as funções pulmonares. No seu caso, o agravante era que, aos sete meses de gestação, sua barriga já estava grande. Àquela altura, a prioridade era salvar a vida da mãe. "Acabou faltando oxigênio para o Fábio, que nasceu prematuro e com baixo peso, mas sem nenhuma sequela", diz Fernanda. O esforço feito para tê-lo de parto natural, no primeiro dia em que havia voltado do coma, consumiu ainda mais seu organismo. Debilitada, com falência renal e hepática, além de anemia, arriscar uma cesariana seria como assinar seu atestado de óbito. Para Fernanda, ainda é difícil mensurar o que doía mais: o procedimento, realizado sem anestesia, ou a frustração de ter tido a criança em condições totalmente adversas. A doença, diz ela, deixou um rastro grande em sua vida, que precisará ser reinventada. "Vou ter de mudar de profissão. Se falo muito me canso e a voz começa a falhar. Também não consigo ficar muito tempo em pé." A fisioterapeuta Regina Moura, do Hospital das Clínicas da UFMG, explica que para vencer as sequelas pós-Covid, exercícios respiratórios, exercícios para melhorar o condicionamento físico e auxiliar na reabilitação neurológica são essenciais. "Desta forma, é possível que o paciente recupere a sua autonomia funcional." Fernanda segue lutando contra todas as adversidades, e já celebra vitórias. Uma delas, conseguir segurar o filho caçula no colo.

Uma questão de fé

(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
Foi superando as suas próprias fragilidades que a empresária Eide Marclana Maurício, de 40 anos, conseguiu trazer o marido, Romero Gomes de Moura, de 39, de volta para a casa. Vencer a Covid-19 sozinho é uma ilusão. Para não perecer na antessala da morte, os pacientes contam com o esforço sobre-humano de equipes multidisciplinares compostas por especialistas de várias áreas. Médicos intensivistas, pneumologistas, infectologistas, cardiologistas, enfermeiros, fonoaudiólogos, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, entre tantos outros que, nos bastidores da pandemia, salvam milhões de vidas. Os mesmo que também serão necessários para que grande parte dos vitimados superem as sequelas pós-Covid. Eide é da turma que não desiste. Quando ela e o marido testaram positivo para o novo coronavírus, em julho deste ano, o filho mais novo do casal tinha apenas 4 meses de idade e a mais velha, 5 anos. Em Eide, os sintomas foram mais brandos. Nele, quase o levaram à morte. Internado no dia 14, logo recebeu medicação venosa e anticoagulante. "Fiquei com ele no hospital até as 23 horas e voltei para casa, crente que ele sairia em breve." Três dias depois, o marido precisou utilizar máscara de oxigênio. Logo estaria no CTI. "Quando recebi a notícia, fiquei em pânico. O médico disse que o estado dele era grave e que iam intubá-lo." Os próximos dias foram um misto de insegurança e medo, sempre com uma nova intercorrência. Mesmo com os aparelhos, Romero não respondia satisfatoriamente ao tratamento. Precisou ser pronado por nove vezes consecutivas, com duração de 20 horas cada procedimento. Deitado de barriga para baixo, a oxigenação do pulmão melhora. "Ele pronava, ficava bem. Voltava, piorava", lembra Eide. Ao todo foram 30 dias no CTI e 7 na internação. Amigos e familiares já se preparavam para o pior. As sequelas pos-Covid, levaram a uma nova batalha. Trinta quilos mais magro e com pouca massa muscular, Romero, enfim, voltou para a casa. Atualmente, já não precisa do andador nem da cadeira de rodas para se movimentar. Segue tendo acompanhamento médico, para recuperar o vigor físico e emocional. Ao lado dos pequenos Bernardo e Ana Clara, Eide não tem dúvidas: "Antes de entregá-lo nas mãos dos médicos, o entreguei nas mãos de Deus. Sou muito grata por ele ter sobrevivido".

Um milagre chamado Eloysi

(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
Na roleta-russa da Covid-19, quem vive ou morre é um mistério que nem a ciência sabe explicar. Com propriedade para falar, Maria Flor, de 53 anos, tem a resposta certa para o dilema: "Foi milagre de Deus. Entreguei minha filha nas mãos do Senhor e ele me deu ela de presente, pela segunda vez". Para ela e para o marido, Jorge Pereira dos Santos, a sabedoria que vem do alto é que instruiu os médicos para salvarem a estudante Eloisy Cristina dos Santos, de 14 anos, sua filha caçula. E não é só ela quem pensa assim. A equipe de saúde da Santa Casa BH também descreve a recuperação da menina como um milagre. No dia 8 de agosto de 2021, Eloisy que "nem gripar, gripava", segundo a mãe, começou a se queixar de cansaço seguido por tosse seca e febre. No dia 10 foi encaminhada ao hospital Odilon Behrens, onde foi diagnosticada com pneumonia. Há pouco tempo, o pai dela havia sido internado com o mesmo quadro. Semelhante ao teste realizado por ele, o da menina também deu negativo para a Covid-19. O dia no hospital foi longo para a família e como era caso de internação, Maria Flor voltou em casa para buscar algumas mudas de roupa para a filha. Ao retornar, Eloisy já estava no CTI. "Tomei um susto. Estavam aguardando vaga para ela em outro hospital." Na madrugada de quarta-feira, a menina foi encaminhada para o CTI da Santa Casa BH. Apesar dos testes seguirem dando negativos, seus pulmões estavam comprometidos e os rins pararam de funcionar. "Estava praticamente morta. Quando o meu marido assinou a autorização para a realização de procedimentos para tentar salvá-la, ele chegou a passar mal." A história de Eloisy comoveu a equipe médica, que se mobilizou para salvá-la. Uma luz fraca se acendeu no horizonte. Um aparelho chamado ECMO, usado no tratamento do humorista Paulo Gustavo, era sua última chance. O problema é que por seu alto custo, o procedimento não é liberado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). "Nos mobilizamos até conseguir contato com a empresa aqui de BH. Conseguimos o aparelho e a equipe sem nenhum custo. A medida foi decisiva para a melhora do quadro dela", afirma Sérgio Luís Ramos, médico intensivista do CTI Clínico da Covid-19 na Santa Casa BH. Atendida por uma equipe multidisciplinar, no dia 31 de agosto Eloisy saiu do CTI e foi encaminhada para a ala dos prolongados. De voz meiga e entusiasmo infantil, a menina diz estar se sentindo ótima. A Covid-19 foi comprovada, mas, inacreditavelmente, não lhe deixou sequelas. Da estadia no hospital, lembra apenas dos "amigos" que ganhou e que salvaram a sua vida.

Os comentários não representam a opinião da revista e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação

Publicidade