Estado de Minas COMPORTAMENTO

Mesmo em meio à pandemia, traçar metas é importante para planejar o ano

Especialistas dão dicas de como lidar com a angústia de planejar a vida durante a crise e explicam como nossa relação com o planejamento tem mudado nos últimos tempos


postado em 24/03/2022 23:59 / atualizado em 25/03/2022 00:01

O médico de família e comunidade Lucas Fonseca, que tem planos de passar um ano sabático na Austrália:
O médico de família e comunidade Lucas Fonseca, que tem planos de passar um ano sabático na Austrália: "Estou bem confiante, porque nesta nova onda que o mundo está vivendo, as fronteiras não se fecharam" (foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
O médico de família e comunidade Lucas Fonseca tinha um plano desde 2018: tirar um ano sabático para fazer intercâmbio e estudar inglês. Já estava tudo resolvido. Ele iria atuar por mais três anos no emprego que tinha e tiraria uma licença para fazer um curso na Austrália. Começou, então, a trabalhar para isso. Foi juntando dinheiro, escolheu a agência com a qual fecharia o negócio… e veio a pandemia. Ainda assim, seguro de que o plano seria possível em breve, Lucas começou a acompanhar notícias do governo australiano sobre abertura de fronteiras, continuou juntando dinheiro e, quando decidiu sair do apartamento que dividia com a irmã, escolheu alugar um imóvel na plataforma AirBnb (tipicamente usado por pessoas que vão se hospedar por curtos períodos). Só que as fronteiras da Austrália demoraram até o fim de 2021 para reabrir.

"Frustração é a palavra que define", diz Lucas. Ele conta que tinha organizado a vida para esse objetivo e passou por muitos momentos de frustração e esperança, seguida de nova frustração (referentes aos momentos mais tranquilos ao fim de cada onda, acompanhados de novos fechamentos de fronteiras). Contudo, afirma que a vontade de concretizar seu sonho trouxe a resiliência necessária. "Sempre com a esperança de que isso iria acabar e eu eventualmente conseguiria ir, enquanto tudo mais estava preparado para a minha ida", diz. Com a abertura das fronteiras, Lucas começou o ano com um novo plano: contratou o curso de inglês e está em processo de obtenção de visto. Já requisitou a licença no trabalho e pretende viajar em maio. "Estou bem confiante, porque nesta nova onda que o mundo está vivendo, as fronteiras não se fecharam", diz. "Se acontecer alguma coisa de diferente, aí a gente se readapta."

A psicóloga e educadora parental Patrícia Ragone:
A psicóloga e educadora parental Patrícia Ragone: "Um dos maiores legados da pandemia foi, sem dúvida, nos forçar a flexibilizar e reinventar nossos projetos com foco no aqui e agora, em detrimento dos prazos mais longos" (foto: Alexandre Namour/Divulgação)
Muita gente, senão todo mundo, tem passado o período de pandemia readaptando planos, mexendo na rotina, adiando ou cancelando compromissos. As constantes incertezas, segundo especialistas, têm mudado a relação das pessoas com a noção de controle e com o planejamento. "As coisas sempre puderam ser adiadas e acasos sempre aconteceram, mas a pandemia nos obrigou a ter de lidar, sucessivamente, com pequenos trabalhos de luto de forma prolongada e coletiva", explica a psicóloga e psicanalista Cecília Lana, doutoranda em estudos psicanalíticos pela UFMG.  "A pandemia eleva a um limite essa questão de planejar mesmo podendo dar errado." Para a psicóloga e educadora parental Patrícia Ragone, especialista em Terapia Cognitiva Comportamental, a lista de metas que as pessoas costumam fazer para organizar seu futuro não pode ser pensada como uma prova rígida de competência, mas como um rascunho para orientar, sempre com espaço para flexibilidade. "Um dos maiores legados da pandemia foi, sem dúvida, nos forçar a flexibilizar e reinventar nossos projetos com foco no aqui e agora, em detrimento dos prazos mais longos", diz.

A psicóloga e psicanalista Cecília Lana, doutoranda em estudos psicanalíticos pela UFMG:
A psicóloga e psicanalista Cecília Lana, doutoranda em estudos psicanalíticos pela UFMG: "As coisas sempre puderam ser adiadas e acasos sempre aconteceram, mas a pandemia nos obrigou a ter de lidar, sucessivamente, com pequenos trabalhos de luto de forma prolongada e coletiva" (foto: @ligianassif/Divulgação)
Ainda que dê vontade, às vezes, de simplesmente desistir dos planos e "esperar passar", especialistas dizem que é possível avançar nos objetivos, talvez com adaptações ao longo do processo. Arriscar, nesse contexto, não precisa ser um pulo no escuro e sim uma aposta calculada, com algumas balizas que ainda se tem, como as orientações das autoridades e as da ciência (com percentual de vacinação, dados sobre as variantes que circulam, formas de prevenção, etc).  "A pandemia nos traz o exercício de sempre fazer o luto do ideal e trabalhar com o possível, ou seja, não é mais o que você idealizou, é o que dá para fazer", afirma Cecília. Ela lembra que talvez seja preciso lidar com a frustração, caso não dê certo, mas não é possível ficar elaborando planos B de antemão, pois o excesso de alternativas pode impedir a pessoa de agir. "Se der errado, existe o trabalho de luto para que a pessoa consiga se abrir para o novo e então começar a pensar no plano B, em construir uma nova estratégia", explica. Ragone ressalta que traçar pequenos passos possíveis também é uma forma de conseguir avançar em um terreno incerto. "É preciso pensar o quê de palpável, para além do que eu já faço ou já fiz, eu posso fazer para alcançar esse objetivo, dentro das restrições e incertezas do contexto em que estamos inseridos", diz. "Podemos contornar as situações adversas se traçarmos pequenos e possíveis passos, lembrando-nos sempre de ativar ao máximo a criatividade e a flexibilidade ao longo do processo."

A ilustradora e escritora Anna Cunha, que produz planners, calendários e outros produtos de papelaria, diz que a venda cresceu na pandemia:
A ilustradora e escritora Anna Cunha, que produz planners, calendários e outros produtos de papelaria, diz que a venda cresceu na pandemia: "Acredito mesmo que em um momento de tantas incertezas como a gente tem vivido, temos sido levados a nos agarrar num esforço próprio (e imenso) de planejamento, de organização, de produtividade" (foto: Divulgação)
Organizar a vida (ainda que com mais necessidade de revisão dos planos) continua uma necessidade, e as ferramentas que ajudam nisso seguem em alta demanda. Segundo a ilustradora e escritora Anna Cunha, que produz planners, calendários e outros produtos de papelaria, a venda cresceu na pandemia. Ela precisou ainda fazer uma reimpressão de emergência de calendários no fim do ano passado, pois o estoque acabou bem antes do previsto. "Acredito mesmo que em um momento de tantas incertezas como a gente tem vivido, temos sido levados a nos agarrar num esforço próprio (e imenso) de planejamento, de organização, de produtividade - não necessariamente naquele sentido autômato, que tem nos cercado também, mas num sentido básico de realização e satisfação subjetiva", afirma.

Lucas ressalta que o mais importante, em sua experiência, tem sido não ficar parado e tentar, como possível, se mover em direção ao objetivo. E ter esperança de que vai ser possível atingi-lo. Ragone lembra que o filósofo Mário Sergio Cortella diferencia o ato de esperar do de esperançar. "O primeiro se trata de uma postura passiva, aguardando que algo ocorra ou que alguém tome uma iniciativa. Esperançar, por outro lado, é correr atrás, arregaçar as mangas da mente, do coração e do fazer, sempre abertos a novos caminhos e perspectivas."

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