
Protagonista e testemunha de transformações no Brasil e no mundo ao longo de duas décadas, a CineOP precisou se reinventar continuamente, de acordo com Raquel Hallak D’Angelo, uma de suas criadoras, para não abrir mão de sua essência: dar visibilidade a tesouros escondidos em cinematecas, arquivos, redes de TV, museus e coleções particulares e promover discussões e reflexões a partir deles.
“Buscamos estar atentos às mudanças no setor audiovisual, às novas formas de produção e circulação dos conteúdos, e ao papel central da memória em tempos de volatilidade”, conta a CEO da Universo Produção. Sempre em busca de renovação, neste ano o evento estreou a mostra competitiva “Arquivos em Questão”, com cinco longas que contam com o uso criativo de imagens de arquivo em disputa. O filme Paraíso, de Ana Rieper, foi o vencedor do prêmio do júri.
Em 20 anos, a CineOP já exibiu mais de 2.000 filmes, promovendo retrospectivas, estreias e curadorias temáticas que ampliam a visibilidade da produção brasileira em suas diversas fases, estilos e territórios. Raquel se lembra do início modesto, com uma programação pequena, sessões ao ar livre, algumas parcerias e um público ainda em formação. E celebra o crescimento. Neste 2025, foram seis dias intensos de atividades, com a exibição de 143 filmes em três espaços, encontros, debates, oficinas, atrações artísticas e ações formativas. O número de participantes também saltou: foram mais de 20 mil pessoas circulando por Ouro Preto durante a mostra, além do público, que somou mais de 100 mil acessos de mais de 60 países.
Confira a seguir, entrevista de Hallak sobre a trajetória do projeto.
Raquel, fazendo um exercício de memória, qual imagem/sensação lhe vem à mente quando relembra a primeira edição da Cineop, lá nos idos de 2006?
Penso que a primeira edição da CineOP, em 2006, surge como um marco que já nascia fazendo história. Lembro com nitidez da emoção do cinema ao ar livre na Praça Tiradentes, da magia de ver a cidade histórica se transformar em uma grande sala de cinema. Mas também me vem à mente o Cine Vila Rica – um verdadeiro tesouro do interior de Minas, com sua atmosfera acolhedora e encantadora. A banda de música recepcionando o público, a fila animada para entrar no cinema... Era tudo muito simbólico e mágico. E, claro, o inesquecível 1º Encontro Nacional de Arquivos, que reuniu os herdeiros de Glauber Rocha, Rogério Sganzerla e Joaquim Pedro de Andrade para apresentar os projetos de restauração das obras de seus pais. Foi um momento de emoção coletiva, que selou o compromisso da CineOP com a preservação da memória do cinema brasileiro.
O que mais mudou nessas duas décadas de mostra: o público, os filmes ou a forma de ver cinema?
Acredito que foi a forma de ver cinema – e isso impactou profundamente tanto o público quanto os próprios filmes. A tecnologia transformou os modos de produção, exibição e fruição das obras, o acesso se ampliou, e hoje as janelas são múltiplas. Mas, ao mesmo tempo, o desejo do encontro presencial, do debate coletivo e da experiência compartilhada permanece vivo – e talvez até mais necessário. A CineOP acompanhou essas transformações sem perder sua essência: ser um espaço de reflexão, memória e futuro para o cinema brasileiro.
Por serem pioneiros, foram muitos os desafios ao longo de todo esse tempo, não é? Mas qual foi o maior deles?
O maior deles, talvez, tenha sido sustentar, com coerência e continuidade, uma proposta tão singular em um país onde a preservação nem sempre é prioridade. Manter viva essa ideia, conquistar parceiros, formar público, envolver a cidade e o setor audiovisual em torno desse propósito exigiu – e ainda exige – muita resiliência, criatividade e paixão. Outro desafio marcante foi a pandemia da Covid-19. Em questão de meses, tivemos que transferir toda a programação para o ambiente digital. O mundo mudou e “adaptação” se tornou a palavra-chave naquele momento. Contudo conseguimos vencer esse cenário com união e agilidade – e mais do que isso: a CineOP ganhou o mundo. No ambiente virtual, tivemos um aumento expressivo de alcance e acesso, conectando públicos de diversas regiões do Brasil e do exterior.
Em termos de dimensão/números, o quanto cresceu a mostra entre 2006 e 2025?
Cresceu de forma impressionante, consolidando-se como uma das mostras mais respeitadas do país e única ao tratar o cinema como patrimônio. Na primeira edição, começamos a programação, sessões ao ar livre, algumas parcerias fundamentais e um público ainda em formação. Hoje, são seis dias intensos de atividades, com mais de 100 filmes em exibição, em três espaços ouropretanos, três encontros temáticos, debates, oficinas, atrações artísticas e ações formativas. O número de participantes também saltou: já ultrapassamos a marca de 20 mil pessoas circulando por Ouro Preto durante a mostra, além do público online.
Desde a primeira edição, o Brasil e o mundo viveram muitas transformações. O que precisou mudar para acompanhá-las?
A CineOP precisou se reinventar continuamente, sem abrir mão de sua essência. Ampliamos o diálogo com as novas gerações, incorporamos temas urgentes como diversidade, inclusão, acessibilidade, crise climática, novas tecnologias aplicadas à preservação, revisitamos o passado da história do cinema brasileiro com o olhar contemporâneo, investimos em formatos híbridos e em ferramentas digitais. Também buscamos estar atentos às mudanças no setor audiovisual, às novas formas de produção e circulação dos conteúdos, e ao papel central da memória em tempos de volatilidade. A escuta ativa, a capacidade de adaptação e a coerência com nossos princípios foram fundamentais para mantermos a mostra viva, pulsante e conectada com seu tempo.
Se a mostra fosse um gênero cinematográfico, qual seria? E por quê?
Seria um documentário poético e político. Poético, porque carrega o encantamento da memória, da história viva, das imagens que resistem ao tempo – e porque acontece em Ouro Preto, um cenário que por si só inspira beleza e contemplação. Político, porque desde o início se propõe a refletir criticamente sobre o cinema como patrimônio, sobre a importância da preservação, da educação e da identidade cultural. É uma mostra que investiga, questiona, emociona e mobiliza – como os bons documentários que não apenas retratam o mundo, mas ajudam a transformá-lo.
Há um filme que, para você, marcou especialmente o CineOP? Seja pela produção, contexto do país, reação do público…
Sim, um filme que marcou profundamente a história da CineOP foi Santiago, de João Moreira Salles. Lembro com muita nitidez da sessão lotada, da fila que virava a esquina, da expectativa do público diante de uma obra que já chegava cercada de comentários e reconhecimento. Santiago foi marcante não só pela história delicada e comovente que revela, mas pela forma como foi construído – um documentário que rompe com convenções e inaugura uma nova linguagem no cinema brasileiro, ao tratar da memória, da ética do olhar e da relação entre quem filma e quem é filmado. A exibição na CineOP foi um daqueles momentos em que sentimos, com força, o poder do cinema em provocar reflexão, emoção e transformação.
O que o público nunca vê, mas é essencial para a mostra acontecer?
O trabalho incansável de uma equipe apaixonada e comprometida. São muitas camadas invisíveis: desde a curadoria cuidadosa dos filmes e debates, a produção técnica minuciosa, a articulação de parcerias, o planejamento logístico, até o acolhimento de cada convidado e a construção da infraestrutura na cidade. Há também o esforço contínuo para captar recursos, cumprir exigências legais, garantir acessibilidade e manter a coerência conceitual do evento. É muito planejamento, amor ao cinema e um senso coletivo de missão.
Em algum momento foi tão difícil que chegou a pensar em desistir?
Desistir jamais. Embora, até hoje, ainda enfrentemos grandes dificuldades na captação de recursos e na escassez de políticas públicas voltadas para a formação e difusão do cinema brasileiro, a paixão pelo projeto e a convicção na importância da CineOP nos mantêm firmes. Cada desafio reforça nosso compromisso de seguir adiante, buscando caminhos para fortalecer a mostra e garantir que ela continue sendo um espaço vital para o cinema e sua memória.
Qual foi o momento mais silenciosamente emocionante desses 20 anos?
Durante uma sessão dedicada à restauração de filmes históricos, vimos o público imerso em absoluto silêncio diante da imagem recuperada, muitas vezes pela primeira vez após décadas. Era um silêncio carregado de reverência, como se ali estivéssemos todos compartilhando uma memória coletiva que renascia na tela. Foi a confirmação silenciosa, mas poderosa, de que a preservação audiovisual é um ato de amor e resistência – um instante em que o passado se faz presente, tocando profundamente cada pessoa na sala