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Estado de Minas CIDADES

Complexo Ferroviário de Corinto sofre com abandono

Tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o conjunto foi o apogeu de uma época, mas hoje não tem projeto de preservação


postado em 19/06/2022 21:25

A estação de trens de Corinto, lugar que deu origem à cidade na região central de Minas Gerais: durante seis décadas ela viveu o auge do transporte ferroviário de passageiros(foto: José Eustáquio de Paiva/Divulgação)
A estação de trens de Corinto, lugar que deu origem à cidade na região central de Minas Gerais: durante seis décadas ela viveu o auge do transporte ferroviário de passageiros (foto: José Eustáquio de Paiva/Divulgação)
No fim dos anos 1950, a jovem Mercedes Alonso do Carmo era passageira assídua da linha de trem que liga Corinto a Diamantina. Estudante do antigo curso normal para formação de professores de educação básica, durante três anos ela morou na terra dos diamantes e o trem era seu transporte entre a cidade natal e a escola, uma distância de cerca de 150 quilômetros. Ela costumava pegar a locomotiva que saía de Corinto às 14h50 e chegava a Diamantina seis horas mais tarde, às 21h. Uma tia sempre a acompanhava nessa longa viagem pelos trilhos que passava pela serra da Tocaia, lugar temido por todos. "O trem ia cheio de jovens estudantes e seus responsáveis", lembra a professora e diretora aposentada, escritora e acadêmica de 82 anos. Havia, ela conta, aquele burburinho constante durante todo o trajeto, porque todos se conheciam.

Se era assim nos trens que saíam de Corinto, na comunidade que nasceu e se desenvolveu em torno da ferrovia Central do Brasil no início do século XX, e viveu seu auge nos anos 1920 a 1980, não era diferente. "Eu me recordo daquele convívio, dos laços que existiam entre as famílias. Ainda existe esse laço, mas antes era diferente", diz Mercedes. Nascida e criada em Corinto, ela é neta, filha e sobrinha de ferroviários e dois de seus cinco filhos (também é mãe de mais duas filhas) estudaram no Centro de Formação Ferroviária e trabalharam no complexo. "Em quase todas as casas da cidade havia um ferroviário", diz.

Vagões abandonados no complexo: a ferrugem e o mato destroem um patrimônio que pertence à União e é parte da identidade de uma cidade mineira(foto: José Eustáquio de Paiva/Divulgação)
Vagões abandonados no complexo: a ferrugem e o mato destroem um patrimônio que pertence à União e é parte da identidade de uma cidade mineira (foto: José Eustáquio de Paiva/Divulgação)
A cidade teve sua origem em um arraial chamado Curralinho, pertencente ao município de Curvelo, escolhido para ser o entroncamento ferroviário entre o Sudeste e o Centro-Oeste do país, ligando também as regiões Nordeste e Norte, além de desbravar o Norte mineiro. A Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB), mais tarde Rede Ferroviária Federal (RFFSA), começou a ser instalada no lugar em fins do século XIX e início do XX. Corinto, a porta de entrada do sertão mineiro, às margens do médio rio das Velhas, na região mais central de Minas Gerais, ganhou vida na década de 1920, crescendo em torno do complexo.

Nada menos que 22 hectares - 17 deles pertencentes à União e os outros cinco a particulares - deram lugar a uma verdadeira cidade ferroviária, com toda a infraestrutura disponível na época. Aos poucos, o arraial, que vivia da agropecuária e da mineração de cristais, foi se transformando em uma cidade desenvolvida, dinâmica e mais populosa. Emancipada em 1921, já contava uma população de 5 mil habitantes, inclusive muitos deles estrangeiros. Logo, tornou-se referência no país. A grandeza do complexo de Corinto, a 210 quilômetros de Belo Horizonte, era medida pelos quatro ramais que comportava, com trens saindo para Montes Claros, Pirapora, Diamantina e BH. Mas, além da estação sempre movimentada até a década de 1980, havia toda uma estrutura industrial compondo esse cenário, com oficinas, depósitos, escritórios, casas de funcionários, escolas. "Só no depósito havia 600 pessoas trabalhando", diz Mercedes.

O arquiteto José Eustáquio de Paiva não se cansa de lutar para que o patrimônio histórico não desapareça do cenário de sua terra natal:
O arquiteto José Eustáquio de Paiva não se cansa de lutar para que o patrimônio histórico não desapareça do cenário de sua terra natal: "O complexo, hoje, é um campo de ruínas e continua sendo depredado" (foto: Roberto Rocha/Encontro)
Hoje, daquele sistema imenso e dos belos casarões em estilo art déco só restaram preservadas algumas casas, antes destinadas aos chefes e engenheiros da rede ferroviária, uma delas na antiga Rua dos Hotéis, atual Benedito Valadares, onde ficava o correio da ferrovia. Eram tantas as casas que todos se referiam ao conjunto delas como "A Residência", conta Mercedes. As lembranças desse tempo distante também estão vivas na memória do radialista e músico Renato de Oliveira, filho e neto de ferroviários, um colecionador de objetos históricos ou "catador de memórias". Seu pai, Brasilino de Oliveira, era um apaixonado pelo ofício e inventou em 1964 "um equipamento que facilitava a vida dos trabalhadores braçais". Renato diz que esse invento foi tão inovador que o serviço de retirar os truques [conjunto de eixos de rodas do chassi de vagões], antes manual e que era feito por vários trabalhadores, passou a ser feito por uma só pessoa". Para o radialista, o trem tem um significado único e preservar a memória dessa época - "um divisor de águas na vida de Corinto" - é fundamental. "Aqui, praticamente boa parte da população é ligada direta ou indiretamente à ferrovia. Quando fundei um jornal, fui logo decidindo o nome, O Trem."

E, se Corinto viveu o apogeu das grandes ferrovias no Brasil e se tornou um centro importante no desenvolvimento do transporte ferroviário nacional, o fim dessa era também marcou uma derrocada para a cidade. Nos anos 1990, com a privatização da Rede Ferroviária e o arrefecimento das viagens de trem de passageiros no Brasil, a região sofreu todos os impactos socioeconômicos porque vivia em torno dessa atividade, fonte de renda direta para a maioria das famílias - outras viviam do comércio, dos serviços, e os demais ainda da agropecuária. Alguns especialistas avaliam que todo o processo de instalação do transporte ferroviário brasileiro e, depois, da troca de donos - passando do governo federal para a iniciativa privada - não foi devidamente planejado e que, por isso, o abandono é a marca da maioria das estações e estradas pelo país, como aconteceu com Corinto.

Ruínas da Ferraria: único edifício neoclássico da região está tomado pelo mato e pichado(foto: José Eustáquio de Paiva/Divulgação)
Ruínas da Ferraria: único edifício neoclássico da região está tomado pelo mato e pichado (foto: José Eustáquio de Paiva/Divulgação)
O complexo, agora, é apenas um cemitério de antigas locomotivas, vagões e carros inteiros, retratos enferrujados de uma época de ouro. Há uma maria-fumaça preservada para mostrar que nem tudo está esquecido. E, claro, os trens de carga ainda usam a linha férrea para transportar minérios, grãos, combustíveis e outros produtos. Não levam mais pessoas. Mas, é pouco, diante de tamanho abandono, o mato tomando conta de uma verdadeira cidade dentro de Corinto. Isso sem falar nos amontoados de lixo e restos de materiais de construção jogados por lá. Passar pelos prédios abandonados, pelas máquinas e vagões enferrujados e pela estação às moscas, para quem viveu os áureos tempos das idas e vindas, traz um sentimento de saudade. "Os agentes vestiam um terno azul, de linho no calor e de casimira no inverno", diz Mercedes. Ela faz questão de lembrar que o relógio do depósito, com suas batidas e seu apito chamando os trabalhadores, por muito tempo foi o som que guiou a vida de Corinto. "A cidade inteira ouvia os apitos."

Diretora aposentada de escolas da cidade, a escritora Mercedes do Carmo guarda boas lembranças dos tempos da ferrovia: viagens inesquecíveis nas locomotivas da Central do Brasil(foto: José Eustáquio de Paiva/Divulgação)
Diretora aposentada de escolas da cidade, a escritora Mercedes do Carmo guarda boas lembranças dos tempos da ferrovia: viagens inesquecíveis nas locomotivas da Central do Brasil (foto: José Eustáquio de Paiva/Divulgação)
Quem também guarda recordações muito vivas é o oficial de justiça e fotógrafo montesclarense Willian Seixas, que foi auxiliar de maquinista, quando foi morar em Corinto, em 1983. Sua memória de infância traz as inesquecíveis viagens de trem de Montes Claros a BH, ao lado da avó materna e da madrinha. Ferreomodelista por hobby, ele está construindo na cidade onde vive, Monjolos, entre Corinto e Diamantina, uma maquete do complexo ferroviário que deve ocupar uma área de 40 metros quadrados. "Esse conjunto é muito grande e para reduzi-lo na escala indicada é necessário ter um espaço maior", diz Willian. E por que Corinto? "Foi lá que me realizei como autêntico ferroviário. Jamais me esquecerei da forma como cheguei à cidade, por volta das 23h, descendo a rua do footing [durante décadas a estação foi o ponto de encontro mais conhecido na cidade], junto com três colegas, também recém-concursados. Viajamos de carona em uma locomotiva U20c até a oficina mecânica, onde uma pessoa nos esperava e onde dormimos a nossa primeira noite nessa cidade." Willian tinha 22 anos quando entrou para a rede e trabalhou na empresa por oito anos.

Situação geral do depósito das oficinas de máquinas e ferramentas e todo o material da ferrovia: o retrato mais triste do abandono de um grande e rico patrimônio(foto: José Eustáquio de Paiva/Divulgação)
Situação geral do depósito das oficinas de máquinas e ferramentas e todo o material da ferrovia: o retrato mais triste do abandono de um grande e rico patrimônio (foto: José Eustáquio de Paiva/Divulgação)
O arquiteto e professor aposentado da UFMG José Eustáquio Machado de Paiva, presidente do Conselho Municipal do Patrimônio de Corinto, luta para que esse patrimônio nacional, tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), não desapareça do cenário de sua terra natal. "O complexo, hoje, é um campo de ruínas e continua sendo depredado", diz. Uma vitória dessa batalha, que ganhou mais força de uns anos para cá, ele conta, foi conseguir que o Iphan tombasse o complexo como um sítio arqueológico, não apenas pelas construções que o compõem, mas também por todo o terreno, inclusive a área onde havia um grande açude que abastecia a ferrovia e a cidade com água tratada. "O complexo não tem similar no sertão brasileiro. É um bem nacional. O Brasil passa por ali."

Uma das ações encabeçadas pelo arquiteto é levar às escolas, para os mais jovens, a ideia de que é buscando reconhecer o valor social de um bem que se preserva a identidade de um povo. "Temos trabalhado como formiguinhas no sentido pedagógico. Não existe um projeto nem verba para a revitalização do complexo. Quando a estação fechou, foram 600 empregos perdidos de uma só vez e ninguém lutou politicamente por isso. A cidade não só se esvaziou de renda e de população, mas também de seus laços de identidade", afirma José Eustáquio.

O historiador Douglas Lima é um pesquisador do papel socioeconômico e cultural das ferrovias do país:
O historiador Douglas Lima é um pesquisador do papel socioeconômico e cultural das ferrovias do país: "Nós ainda não entendemos o impacto do trem na história do Brasil" (foto: Arquivo pessoal)
O historiador Douglas Lima, mestre e doutorando pela UFMG, debruça-se sobre o tema da memória ferroviária mineira e brasileira com um interesse especial. A história de sua família também está ligada ao trem de ferro, porque foi num que seu avô migrou de Capelinha, no Vale do Jequitinhonha, rumo ao Paraná, em 1951, partindo de Diamantina. Desde 2017, Douglas, que nasceu em Capelinha, pesquisa a importância do patrimônio ferroviário de Corinto, o que lhe rendeu um papel de destaque na luta pela preservação dessa memória e a veiculação de artigos em publicações especializadas. "Nós ainda não entendemos o impacto do trem na história do Brasil", diz. Segundo ele, "a preservação não tem só dimensão cultural, mas também a econômica, porque pode gerar empregos para toda a região. É um patrimônio gigantesco, por isso é fundamental criar estratégias para preservá-lo e investir em turismo é uma delas." Sua ideia é a criação de um museu nacional ferroviário em Corinto, como o que há em São Paulo, que resgate páginas importantes da história do Brasil no início do século XX até a década de 1990. "Corinto é um resumo disso tudo."

O Complexo Ferroviário de Corinto não foi tombado pelo Iphan isoladamente. Ele compõe todo o conjunto ferroviário brasileiro e ganhou a chancela do órgão em 2003. Segundo o prefeito Evaldo dos Reis, "hoje, o maior projeto do município é conseguir que a União Federal nos dê recursos para a conservação e manutenção dos bens". E completa: "Assim, vamos recuperar os quase 30 anos perdidos de proteção dos bens materiais e imateriais deste complexo de bens ferroviários tão importante para a história de Corinto e do Brasil".

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