Estado de Minas ENTREVISTA

Sabrina Abreu e Ronaldo Fraga contam bastidores e curiosidades de livro

"Memórias de um Estilista Coração de Galinha", lançado em novembro, é fruto de nove anos de conversas entre os dois


postado em 15/01/2024 14:11 / atualizado em 15/01/2024 14:11

(foto: Nino Andrés/Divulgação)
(foto: Nino Andrés/Divulgação)
A parceria entre o estilista e a jornalista começou de forma inusitada, quando Sabrina Abreu teve a ideia de criar uma obra semelhante ao livro "Conversas com Woody Allen", do biógrafo Eric Lax. Ronaldo Fraga relutou - mas só inicialmente. Cedeu à persistência de Sabrina, que compilou os nove anos de conversas e revelações. "Memórias de um Estilista Coração de Galinha" (Autêntica) não é apenas uma retrospectiva da carreira do estilista, mas uma análise do cenário da moda brasileira. Em suas reflexões, ele expõe o fim de uma era na moda do país, destacando transformações significativas e especialmente acentuadas pela pandemia.

Formado em design de moda pela UFMG e com pós-graduação na Parsons, de Nova York, e na Central Saint Martins, em Londres, o estilista se distanciou dos desfiles presenciais e discute a transformação da moda, apontando perda de espaço para temas como gastronomia e decoração, indicando uma mudança nos interesses globais. Assim como Fraga, o livro não esquiva-se de polêmicas, revelando momentos marcantes e desavenças com figuras conhecidas, como Tom Zé e Maria Bethânia. A história envolvendo Bethânia, em especial, destaca um episódio de desentendimento durante uma colaboração que resultou em reviravoltas criativas.

Fraga não poupa detalhes e, sob a condução de Sabrina, cativa entusiastas da moda, ao passo que oferece um vislumbre do Brasil menos conhecido, a partir de referências culturais que vão da crina do cavalo ao couro de peixe. Com sua mistura de autobiografia e análise do panorama da moda, o livro é uma chave que abre não somente as portas da vida do estilista criado em Belo Horizonte, mas que apresenta a transformação de uma era na moda brasileira. Confira a seguir o que Fraga e Sabrina disseram a Encontro.

Quem são:

Sabrina Abreu, 42 anos
  • Origem: Belo Horizonte

  • Carreira: Jornalista formada pelo UniBH e com pós-graduação em comunicação pela UFMG, escreveu sete livros, entre eles "A Voz do Alemão", de 2013, em parceria com  o jornalista e ativista social Rene Silva, e "O Último Kibutz", de 2017. Este ano, esteve em Israel cobrindo o confronto entre o país do Oriente Médio e o Hamas pela Band e BandNews.

Ronaldo Fraga, 56 anos
  • Origem: Belo Horizonte

  • Carreira: Formado em estilismo pela UFMG e pós-graduado pela Parsons School of Design, de Nova York, e pela Central Saint Martins, de Londres. Desfilou sua primeira coleção "Eu amo coração de galinha", em 1996, no Phytoervas Fashion, quando recebeu o prêmio de Estilista Revelação. Em 2001 estreou na São Paulo Fashion Week. Foi escolhido duas vezes  pelo Design Museum de Londres como um dos dez estilistas mais relevantes do mundo.

Encontro - Sabrina, o que te inspirou a criar um livro baseado em conversas, seguindo o exemplo de "Conversas com Woody Allen"?

Sabrina Abreu - O que me inspirou foi o formato e a oportunidade de explorar a fundo e sem pressa a mente de um criador com uma obra tão vasta. Como jornalista, as entrevistas que fiz para veículos impressos ao longo da minha vida sempre precisavam ter um "gancho", ou seja, algum acontecimento factual que justificasse a publicação da conversa, além de ter um limite de páginas e de caracteres. A ideia do livro era me livrar dessas duas amarras e, simplesmente, mergulhar no universo do Ronaldo Fraga - com sorte, trazendo os leitores comigo.

Qual aspecto da vida e obra de Ronaldo Fraga você acha que ficou mais evidente durante as conversas para o livro?

Sabrina Abreu - O amor pelo Brasil, a raiz em BH, a contribuição para a moda e para a cultura, o pensamento afiado, a língua afiada também, que não deixa nada passar e nunca se censura. Tudo isso faz parte do Ronaldo Fraga. O retrato em longa exposição que esse livro se propôs a captar traz essas nuances, retratando um criador. A criatividade dele é o grande destaque do livro.

O livro foi lançado na Flip. Como foi a recepção do público? E quem é esse público?

Sabrina Abreu - Foi muito bem acolhido. A mediação foi feita pela Bianca Ramoneda, que é uma jornalista de cultura maravilhosa, e ela ajudou a dar o tom da conversa, que é com o Ronaldo Fraga como "um dos maiores artistas do país" - nas palavras dela, e olha que a Bianca já entrevistou muito artista. O público na Flip, claro, é aquele conectado à cultura e à literatura, mais do que à moda. Mas o livro também é voltado para os apaixonados pela moda, claro, assim como para aqueles que querem saber mais sobre o Brasil e pensar sobre nosso país - que o Ronaldo conhece como poucas pessoas. Sem contar que é para curiosos, criativos e libertários em geral. Ah, e para quem ama uma boa história, Ronaldo me contou vários casos, que fizeram a gente rir e chorar nos nove anos em que o livro foi feito.

O livro destaca a oportunidade única do leitor compartilhar da intimidade dos encontros entre você e Ronaldo Fraga. Como você equilibrou a objetividade jornalística com essa atmosfera mais pessoal?

Sabrina Abreu - Não sei se é exatamente um equilíbrio, é mais um "bololô", um emaranhado. Segui o roteiro que eu mesma criei e passamos por cada uma das coleções, nisso está alguma objetividade. Também chequei os sobrenomes e datas, revi vídeos de desfiles, a acuidade do jornalismo está aí. Tirando isso, o enfoque foi no que é subjetivo mesmo, inspirações, criatividade, insatisfações (com a política, por exemplo).

"O amor pelo Brasil, a raiz em BH, a contribuição para a moda e para a cultura, o pensamento afiado, a língua afiada também, que não deixa nada passar e nunca se censura. Tudo isso faz parte do Ronaldo Fraga"

Sabrina Abreu, jornalista

Durante esses nove anos de entrevistas, houve alguma história inusitada nos bastidores, como desencontros ou desentendimentos, que não estejam detalhadas no livro?

Sabrina Abreu - Não houve desencontros ou desentendimentos entre nós. Mas houve entre Ronaldo e personagens importantes da cultura brasileira, como Maria Bethânia e Tom Zé. Também existiu uma tentativa de cancelamento da opinião pública, por um mal-entendido, durante a coleção Futebol, cuja beleza incluía perucas de Bombril - Ronaldo provou na justiça que não havia nenhum traço de racismo naquilo - e, mais recentemente, também deu um pouco o que falar um bordado com o rosto de Marielle, no desfile Guerra e Paz - mas foi prontamente resolvido com a família. Esses e outros casos de bastidores estão no livro. Sem censura.

O que é ser coração de galinha na vida?

Sabrina Abreu - Essa aí eu deixo para o Ronaldo, mas tem a ver com "Eu amo coração de galinha", o nome de seu primeiro desfile como profissional.

E aí, Ronaldo, já que a Sabrina passou essa bola para você, o que é ser coração de galinha na vida?

Ronaldo Fraga - Bom, eu amo coração de galinha, e esse foi o título de uma coleção, quando eu volto de Londres e estreio como estilista no Brasil. Mas, obviamente, é uma metáfora. E essa metáfora fala de um coração frágil, ela fala de um coração brasileiro, de um coração aberto, de um coração exposto. Então, é desse Coração de Galinha que eu falo, um insuspeito, com a emoção e a poesia que está naquilo que passa despercebido. É esse lugar do quase despercebido que me interessa.

No processo de revisitar suas memórias, houve algum momento que o surpreendeu ou que foi um pouco desconfortável revisitar?

Ronaldo Fraga - Eu acho que, ao falar de um momento surpreendente ao revisitar essa memória, destaco o encontro com a Sabrina. Ela me pegou de surpresa, e imediatamente eu já estava confiando nela, compartilhando coisas que nunca havia dito a ninguém.  Eu acho que isso é muito em função do olhar generoso, receptivo e bem-humorado dela. Outro ponto que me surpreendeu foi quando, ao parar e refletir sobre minha história, como foi o caso desse livro, percebi a extensão do que vivi e construí nos últimos 30 anos de profissão. Agora, esse trabalho se tornou para mim mais do que um livro; ele fala de moda, de cultura brasileira, mas ele basicamente está falando de mim mesmo. E o ofício entra ali como a forma que eu me encontrei de me ver, de me forjar no mundo, no meu tempo, me construir como homem do meu tempo.

Como você acha que uma obra que detalha a vida do estilista/artista pode contribuir para a evolução do setor da moda, considerando o que você disse em outra entrevista, sobre a mudança de foco para temas como gastronomia e decoração?

Ronaldo Fraga - Obviamente que o meu trabalho, a minha visão de moda não é a verdade absoluta. A moda é um setor tão rico, tão complexo, tão diverso, existem várias formas de se entender e de se fazer moda, então, o que consta ali no livro é um jeito de se fazer moda de um estilista brasileiro desse período. Eu tenho minhas apostas, eu já venho falando há muito tempo que a moda estava doida para se libertar da roupa, e opinar, transitar e dialogar com outras frentes da sociedade, com outros vetores da sociedade, e o livro mostra como eu fiz isso, na prática, ao longo desses anos.

O livro aborda polêmicas, como as brigas com Tom Zé e Maria Bethânia. Poderia citar outros casos que despertam a curiosidade dos nossos leitores para ler mais sobre sua história?

Ronaldo Fraga - Bom, esse livro é um livro aberto, não é à toa que na capa, o artista me ilustrou lá nu, com as galinhas, um galinheiro exposto. Tem as pequenas polêmicas, tem polêmicas marcantes, a famosa polêmica da Peruca de Bombril, da coleção Futebol, que eu tive que responder em Brasília e no Tribunal de Justiça de São Paulo por racismo, mas eu estava justamente falando o inverso. Então, todo esse processo é explicado como a coleção polêmica, Guerra e Paz, de 2019, que trazia a Marielle Bordada. Essas são algumas polêmicas, mas tem outras, como sobre as vezes que eu quebrei, ou sobre as vezes que meus projetos deram errado.

O livro destaca seu processo criativo ao longo de 60 coleções. O que fundamenta os processos de criação e a mensagem que deseja passar, fundamentalmente, na sua obra?

Ronaldo Fraga - Tem um livro do estilista inglês Paul Smith que o título é You Can Find Inspiration in Everything (Você Pode Enxergar Inspiração em Exatamente Tudo). Você não viu? Olhe de novo. O Brasil é um manancial de assombração e alumbramentos. Tudo o que me assombra e tudo o que me alumbra provoca algo em mim, e essa provocação angustia. E é essa angústia que pode ser transformada em poesia através do processo de criação. E isso é de várias formas: uma biografia de alguém, de algum artista brasileiro, uma viagem, um saber e um fazer, uma história inventada, uma história da memória, a política, uma tragédia. Quer dizer, exatamente tudo no olhar de um criador vai ser transformado em criação, porque a criação é a fala desse criador por seu tempo.

"O Brasil é um manancial de assombração e alumbramentos. Tudo o que me assombra e tudo o que me alumbra provoca algo em mim, e essa provocação angustia. E é essa angústia que pode ser transformada em poesia através do processo de criação"

Ronaldo Fraga, estilista

Você é reconhecido como defensor da diversidade e sustentabilidade na moda. Como esses princípios se manifestam em suas coleções e no livro?

Ronaldo Fraga - Talvez a mensagem que eu sempre quis passar em todos os anos de coleção é encorajar o outro, encorajar o outro a ser ele mesmo, encorajar o outro a entender que isso tudo aqui é passageiro. Temos um personagem nesse rolê, um personagem que a gente forja e o constrói todos os dias. E a roupa e a moda podem ser grandes aliados na construção desse personagem, eu acho que basicamente eu sou um provocador de coragem no outro. Desejo falar para o diverso, falar para o sustentável, ver as questões e os problemas de hoje, mas sinalizando o futuro. Essa sempre foi minha grande preocupação. E o leitor vai poder localizar nessas coleções, de uma forma ou de outra, essas discussões, que estavam no ponto central da história. As pessoas vão ver que tudo isso está em todas as coleções, está tudo ali.

Qual é a sua visão sobre o futuro da moda brasileira, considerando as mudanças sociais e as transformações que você testemunhou ao longo de sua carreira?

Ronaldo Fraga - A moda mudou e ela muda o tempo inteiro. O Brasil já teve uma indústria vigorosa no setor têxtil. Essa indústria minguou, migrou, como aconteceu com o mundo inteiro, para os países asiáticos. E o nosso caminho é estimular, incentivar e investir em criatividade. Uma criação que pense, uma criação que fale. Falamos tanto da indústria criativa. E é o que temos, é o que nos resta e é no que nós somos muito bons. Eu acho que talvez a nossa mistura, nosso sangue mestiço e o nosso olhar jovem sobre o mundo caduco sejam eventos determinantes nessa história.

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