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Estado de Minas ENTREVISTA

Conversamos com o procurador-geral de Justiça de MG, Jarbas Soares Júnior

Em seu último ano de mandato, ele fala sobre tecnologia na Justiça, "saidinhas" de presos e prega a importância da conciliação


postado em 08/03/2024 00:59

(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
Em sua quarta passagem pela Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais, Jarbas Soares Júnior aponta uma mudança significativa no Ministério Público desde que ingressou na carreira, no início da década de 1990. Segundo ele, no final do século passado os promotores se limitavam a "propor ações". "Ia no juizado, pegava uma liminar, resolvia, perdia no mérito, recorria… E a sociedade está cansada de ações espetaculares", diz. Quando trabalhou em Brasília, no Conselho Nacional do Ministério Público, viu que havia um caminho mais inteligente a percorrer: a busca de soluções. Para ele, nem sempre o "prendo e arrebento", apesar de muitas vezes satisfazer os anseios da sociedade, tem o resultado mais benéfico. Ele cita o acordo com mineradoras para o descomissionamento de barragens a montante. O Ministério Público foi criticado por fazer acordo com empresas que não conseguiram cumprir o prazo estipulado pela lei Mar de Lama, aprovada depois da tragédia de Mariana. Foram firmados novos prazos, mas as mineradoras pagaram em torno de 450 milhões de reais de dano moral coletivo. "É um amadurecimento institucional, que não pode ser confundido com leniência, mas com mais efetividade e mais profissionalismo nas ações."

Nesta entrevista a Encontro, concedida em uma sexta-feira à noite, depois de um dia cheio de compromissos, ele fala também dos benefícios e riscos da tecnologia – com especial atenção às eleições do segundo semestre –; das ameaças recebidas por promotores; e da possibilidade de a Rodovia do Minério, que tiraria 1,5 mil carretas por dia da BR-040, sair do papel. Sobre o que pretende fazer quando o mandato acabar, ele diz que ainda não se decidiu. Só descarta ingressar na política (apesar dos burburinhos em contrário). "Não tenho voto", diz.

  • Quem é: Jarbas Soares Júnior, 59 anos

  • Origem: Montes Claros (MG)

  • Formação: Formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG)

  • Carreira: Ingressou no Ministério Público em 1990 e foi promovido ao cargo de procurador de Justiça em 2001. Foi coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente, do Patrimônio Histórico e Cultural e de Habitação e Urbanismo (CAO-MA). Exerceu as funções de conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) nos biênios 2011/2013 e 2013/2015 e foi Presidente da Comissão de Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público até agosto de 2015. Eleito para o cargo de Procurador-Geral de Justiça de Minas Gerais nos biênios 2005/2006, 2007/2008, 2021/2022 e 2022/2023.

Revista Encontro - O Ministério Público de Minas Gerais recebeu dois prêmios nacionais de inovação no final de 2023. O senhor, inclusive, recebeu um prêmio de liderança exponencial. O que faz Minas ser reconhecida nessa área, na sua opinião?

Jarbas Soares Júnior - Quando eu assumi a procuradoria, em dezembro de 2020, nós éramos o 26º Ministério Público em avanço tecnológico. Na época, eu brincava que pior que isso, só o Ibis (clube pernambucano que ficou famoso por ser considerado o "pior do mundo"). Então, resolvi investir nisso. A primeira providência foi colocar nessa área um procurador de Justiça que tinha afinidade com as questões tecnológicas. Foi um passo importante para que pudéssemos fazer a reforma necessária, porque hoje a Justiça está toda indo para o campo tecnológico, está praticamente toda virtual. O caminho é esse e nós precisávamos tirar a diferença. Então, começamos a fazer esses investimentos e demos um salto enorme. Hoje, vários projetos nossos são copiados e outros são levados até para ambientes fora do Brasil, para grandes feiras, para serem apresentados para outras instituições, como é o caso da promotoria online. Sabemos que muito ainda precisa ser feito, mas já avançamos. Não estamos mais atrás de ninguém.

E quais os riscos do ambiente virtual, que está cada vez mais tomando conta da Justiça?

O principal é o estresse que está gerando na classe. Antes, o promotor, o juiz ou o desembargador abria o processo e ia para a folha tal, onde estava o depoimento tal. Agora, para saber o que a pessoa falou em depoimento, tem de assistir de novo à audiência, para captar aquele ponto. Hoje mesmo esteve aqui um representante da Google. Eles terão um programa, que será lançado em breve, no qual você já pode ir, como era antes, diretamente na parte do depoimento que te interessa, para fazer a prova no processo. Estamos sempre buscando tecnologias novas.

O senhor falou sobre as vantagens da tecnologia, mas há, também, os perigos da tecnologia. Este é um ano de eleição e uma das preocupações é com o uso da inteligência artificial na produção, por exemplo, de vídeos fakes. Como o Ministério Público está se preparando para essa possibilidade?

A Justiça Eleitoral como um todo está se preparando, estudando, por exemplo, o que já aconteceu em outros países, que tiveram eleições recentemente. Vídeos fakes, com a imagem da pessoa, como se ela estivesse falando, são cada vez mais reais. E isso pode ter um efeito enorme no eleitorado. Sabemos também que, na véspera da eleição, muitas vezes nem dá tempo de contrapor. Então, há duas formas de combater o mau uso da inteligência artificial: uma é, ao detectar, impedir; a segunda é ter uma fiscalização como há na propaganda eleitoral. Mas há a questão de o  ambiente virtual ser muito rápido, muito ligeiro. É fundamental que a Justiça Eleitoral deixe claro que, se aquela fake news, aquele informativo, tiver potencialidade de mudar o resultado da eleição, os julgamentos serão rápidos para punir os responsáveis, inclusive com a possibilidade de cassar candidaturas por abuso dos meios de comunicação. Muitas vezes as informações circulam tão rápido que você não consegue impedir que cheguem a um número grande de eleitores. Punir depois é uma obrigação e eu entendo que a Justiça Eleitoral tem de ser muito firme, para não deixar que isso se alastre.

Os avanços tecnológicos podem fazer com que os processos percam sua "humanização"?

As audiências virtuais já existem, já estão funcionando. Você tem eventos híbridos, em que a pessoa pode participar presencialmente ou virtualmente de uma audiência ou de uma sessão de julgamento e isso tem facilitado muitas coisas. Agora, o que nos preocupa é a inteligência artificial, a máquina, substituir o homem e as decisões serem robotizadas. A humanização é muito importante porque, pela minha experiência, sobretudo porque fui promotor de meio ambiente, uma coisa é você ler, até assistir, outra coisa é você estar lá pessoalmente. Penso que no futuro os fóruns, os tribunais, vão diminuir de tamanho. Terão muitas salas de videoconferência e menos salas de audiência. Para pegar o depoimento de uma pessoa que tem que dizer a verdade, por exemplo, eu acho muito difícil isso ser feito num ambiente virtual. Ela pode estar com um revólver na cabeça. O que eu imagino que acontecerá no futuro: a pessoa estará presencialmente no fórum ou na promotoria e o juiz e o promotor não estarão necessariamente lá.

O senhor vem lembrando do assassinato do promotor Chico Lins, ocorrido há 22 anos, e tem dito que os promotores continuam a receber muitas ameaças. O que vem sendo feito para que episódios como esse não se repitam?

A morte do promotor Francisco Lins do Rego, um doce de pessoa, abalou muito a nossa instituição e trouxe um alerta para o Ministério Público brasileiro: "nós não podemos continuar sendo os mesmos". Estamos lidando com organizações criminosas. Tivemos que sair para um novo tipo de atuação, um combate ao próprio crime organizado e um sistema de segurança para os membros do Ministério Público. Hoje, todo Ministério Público tem um gabinete de segurança institucional, além dos GAECOs (Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado). Nós temos hoje uma cultura bastante diferente, tanto na área administrativa de proteção aos nossos colegas, quanto no combate ao crime organizado, o que é feito implacavelmente. Toda semana tem uma operação do Ministério Público no estado contra o crime organizado.

Quando da morte do sargento Roger Dias da Cunha, que foi baleado em uma perseguição policial em janeiro, por uma pessoa que gozava da "saidinha", como se convencionou chamar a saída temporária do sistema carcerário, o senhor publicou nas redes sociais que seriam necessárias revisões nos critérios de ressocialização. O que, na sua opinião, precisaria ser revisto?

De primeira, eu acho que têm de ser ouvidos muitos especialistas. Além dos nossos membros do Ministério Público que trabalham na execução penal, os próprios juízes e os estudiosos do assunto, no parlamento, para rever. Eu acho que nós precisamos ter critérios mais claros, porque não pode uma pessoa que teve uma "saidinha" e não voltou para o presídio no momento correto, não ser presa no mesmo dia, pelo menos no dia seguinte que ele saiu e não voltou. A Justiça tem que monitorar isso melhor. Nunca fui contra a ressocialização dos condenados, ao contrário, é necessário que isto seja feito, porque as pessoas têm que voltar aos poucos para a vida. Dizer simplesmente que tem de acabar com a "saidinha" é um discurso estéril. Nós não somos, no Ministério Público, contra as saídas temporárias, mas é importante um estudo para saber se aquela determinada pessoa pode realmente sair. No caso específico do criminoso que matou o sargento, o Ministério Público deu parecer contra a saída, mas a juíza liberou. Eu acho, então, que ela tinha a obrigação, de, ao terminar o prazo, mandar recolher. E não fez isso. Outra questão é que o Estado precisa ter uma política para a pessoa quando se der o cumprimento da pena. Se não tem, ele é colocado na rua e não sabe nem para onde ir. O Estado tem que ter uma política para a pessoa voltar a viver dignamente na sociedade e não ser cooptado novamente pelo crime.

O Ministério Público vem destinando recursos para obras de melhoria ou restauração de equipamentos públicos, como no caso do Palácio da Liberdade. De onde vem esse dinheiro?

O Ministério Público é pago para cumprir a missão de defender a sociedade e também de buscar o ressarcimento de fatos ilícitos praticados contra essa própria sociedade. Muitas vezes, as sentenças ou os acordos que são feitos em relação a determinado fato geram um recurso que é recuperado e, pela lei, o Ministério Público teria que destinar o recurso para reparação de bens lesados. Mais ou menos, a lei diz: se o bem não tiver condições de ser recuperado, o recurso pode ser destinado para outro bem com a mesma finalidade. Esses recursos não são do Ministério Público, mas públicos. Muitos recursos são oriundos de ações no campo econômico-tributário. Só da área econômico-tributária e do meio ambiente, o Ministério Público, com seus parceiros, conseguiu recuperar 4,7 bilhões de reais. Um acordo muito interessante e que foi mal compreendido, foi o que fizemos com as empresas que tinham barragens a montante. A lei Mar de Lama, aprovada depois do crime de Mariana, previa o prazo de 25 de janeiro de 2022 para descomissionamento das barragens, a descaracterização dessas barragens. Algumas empresas cumpriram, outras não. Nós tínhamos dois caminhos: o "prendo e arrebento", que é embargar, prender diretor, afastar diretor, bloquear recursos, que pode gerar o problema daquele empreendimento ficar meio que abandonado e gerar um risco maior para a população. A segunda alternativa seria o prorrogamento de prazos, ou então anistia. Nós também não concordamos. E a data estava chegando. Nós buscamos uma solução alternativa: não teria uma anistia, nem um prorrogamento de prazos impunemente. As empresas que não tinham ainda feito descomissionamento, fizeram um acordo conosco, com prazos muito rígidos daqui para frente, com acompanhamento de auditorias e do Estado. Mas elas foram obrigadas a pagar um dano moral coletivo por não ter cumprido a lei, que deu em torno de 450 milhões de reais. Esses recursos estão sendo utilizados hoje dentro dessas áreas que estavam afetadas. De lá para cá, algumas empresas já conseguiram descomissionar e outras estão no processo. O Ministério Público hoje monitora essas barragens por meio de um sistema que foi cedido para nós pelo governo da Grã Bretanha. Felizmente, até agora não aconteceu nada e as empresas estão cumprindo os prazos. Às vezes, a decisão de tomar uma ação mais rigorosa não vai trazer o resultado desejado. Alguns criticam nossa atitude, mas temos consciência que fizemos o melhor para o Estado.

O Ministério Público também intermedeia alguns acordos. Um deles, que está sendo muito comentado, é em relação à Rodovia do Minério, que pretende tirar 1,5 mil caminhões por dia da BR-040. Quais as chances dessa rodovia sair realmente do papel?

Na BR-040 morrem cerca de 100 pessoas por ano. Em três anos, dá mais do que a tragédia ocorrida em Brumadinho, a maior tragédia humana que nós tivemos. Chegamos à conclusão que é praticamente impossível você buscar uma alternativa judicial, porque teria que descer ação contra vários empreendimentos ao mesmo tempo, contra várias pessoas jurídicas, de direito público e direito privado ao mesmo tempo. E tudo teria que ser julgado rapidamente, ao mesmo tempo. Isso é praticamente impossível. A oportunidade é sentarmos todos à mesa para trabalharmos em uma solução.

Quem seriam esses todos?

A União Federal, representada pela Agência Nacional de Transporte Terrestre; o governo do estado; o governo dos municípios da região, como Ouro Preto, Itabirito, Conselheiro Lafaiete, Belo Vale e Congonhas; o Ministério Público; e as empresas. Se tirarmos 1,5 mil caminhões diários, lá volta a ser uma rodovia normal. Não adianta fazer uma reforma hoje e seis meses depois estarmos com todos os problemas de volta. Temos de resolver os problemas. Isso vai acontecer? Não posso dizer. Tem chance de acontecer? Tem. Marcamos uma próxima reunião para alinhamento do poder público e, se der certo, nós vamos alinhar o que a gente vai propor para as empresas. Se todo mundo contribuir, nós temos condições de resolver um problema gravíssimo, seríssimo. A solução não está tão difícil de fazer, desde que todos contribuam.

É seu último ano como procurador-geral. O que pretende fazer quando o mandato chegar ao fim, em dezembro?

Ainda não decidi. Eu tenho a opção de continuar na minha instituição, já que estou aqui concursado há mais de 30 anos. Também posso me aposentar. Vamos ver o que o destino reserva.

Quais são, na sua opinião, os principais acertos desta gestão?

Quando eu entrei no Ministério Público, o que sabíamos fazer era propor ação. Ia no juizado, pegava uma liminar, resolvia, perdia no método, recorria… E a sociedade, na verdade, está cansada de ações espetaculares. Então, o que a gente precisava era que o Ministério Público tivesse uma consciência maior do seu papel. Eu não tinha perspectiva de voltar a ser procurador-geral. Mas eu vi, principalmente quando fui para Brasília, para o Conselho Nacional do Ministério Público, que nós estávamos em um caminho errado, principalmente em comparação a Ministérios Públicos de fora do Brasil. Vi que tínhamos um caminho mais inteligente a percorrer. Saímos de uma zona de conflitos, às vezes desnecessários, para a zona de construção de soluções. Também estavam demonizando muito o empresariado e a política. Todo lugar tem gente ruim e gente boa. Estamos tentando deixar assim, como referência, que a presunção tem que ser outra. Lógico que o promotor de Justiça, ele trata tudo com desconfiança, é da natureza, mas a presunção inicial tem que ser de que as coisas são legítimas. Tendo indícios de que não, tratar como não, e separar o problema da solução. O que eu digo: se tem um crime, vamos combater o crime. Mas se tem solução para aquele problema, vamos resolver o problema. Nós somos orientados a vida inteira para dizer assim: "nós não somos inimigos do réu, nós somos inimigos do que o réu fez". Só que, com a classe política e com o empresariado, a gente está sendo inimigo do que o empresário fez de errado e dele também. Ao mesmo tempo, nós precisamos de uma maior aproximação com a sociedade. Isso não é fácil, porque nem sempre conseguimos identificar qual é o interesse da sociedade. E o membro do Ministério Público tem uma procuração para falar em nome da sociedade. A Constituição nos dá essa procuração. Nesse período passamos a ouvir mais a sociedade. É um amadurecimento institucional, que não pode ser confundido com leniência, mas com mais efetividade e mais profissionalismo nas ações.

O senhor tem aspirações políticas?

Tenho nada. Não tenho voto. No máximo, teria os 905 votos que garantiram a minha eleição para procurador-geral. Mas são só esses e o da minha mãe. Acho que nem o da minha mulher.

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