Estado de Minas ENTREVISTA

Psicólogas falam sobre temas que muitas vezes geram sofrimento às mulheres

Em entrevista à Encontro, Virginia Sasdelli e Bel Ornelas, do Conexões Femininas, conversam sobre gordofobia, relacionamentos, sexualidade e autoimagem


postado em 16/09/2024 14:28 / atualizado em 16/09/2024 14:29

Virginia Sasdelli (à esquerda) e Bel Ornelas(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
Virginia Sasdelli (à esquerda) e Bel Ornelas (foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
Enfrentar regras impostas na sociedade às mulheres é assunto de longa data. Para se ter ideia, as mulheres brasileiras só conquistaram o direito de votar em 24 de fevereiro de 1932, por meio do Decreto 21.076, do então presidente Getúlio Vargas. A emancipação feminina luta pela igualdade entre homens e mulheres, valorizando as diferenças entre os gêneros. Emancipar significa tornar-se livre ou independente. Na filosofia, representa a luta das minorias por seus direitos de igualdade enquanto cidadãos. Nesse contexto,  as psicólogas Virgínia Sasdelli, de 40 anos, e Bel Ornelas, de 45, decidiram falar sobre as dores das mulheres com a criação do grupo Conexões Femininas. Elas mostram que em pleno século XXI - e mesmo nas capitais do país -, a mulher ainda precisa quebrar tabus e vencer preconceitos para ser valorizada. "Vamos explorar o universo feminino, criando conexões e pensando juntas em maneiras de minimizar sofrimentos e vislumbrar novos caminhos", diz Virgínia. "Precisamos buscar mais as outras relações e descolonizar os afetos", ressalta Bel.

Quem são:

Virginia Sasdelli
  • Origem: Belo Horizonte (MG)

  • Formação: Graduada em Psicologia pela Fumec, fez qualificação em Saúde Mental pela Escola de Saúde Pública (ESP MG) e curso de Psicanálise no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPMSM-MG).

  • Carreira: Atuou como psicóloga clínica até 2013. É criadora de conteúdo do BH Dicas desde 2014, fez parte do podcast Tanto de Trem, dedicado à cidade de Belo Horizonte. Co-criadora do grupo Conexões Terapêuticas.

Bel Ornelas
  • Origem: Belo Horizonte (MG)

  • Formação: Graduada em Psicologia pela PUC Minas com especialização em Psicopedagogia pelo CEPEMG, em Terapia de Casal pelo CEP (Centro de Estudos Psicanáliticos), em estudos de Gênero e feminismo pelo Feminist Camp em Nova Iorque, e em Psicosexologia, pelo Cresex.

  • Carreira: Desde 2019 atua como psicóloga clínica com atendimento exclusivo a mulheres, sob uma perspectiva feminista e de gênero, especializada em relacionamentos e sexualidade. É fundadora da AVA, um espaço de bem estar feminino íntimo e sexual. Co-criadora do grupo Conexões Terapêuticas.

Encontro - Há 10 anos a Virgínia criou o canal BH Dicas, no Instagram, e depois o blog no Portal Uai. Como surgiu a ideia de criar o Grupo Conexões Femininas?

Virgínia Sasdelli - Eu sou formada em psicologia e antes do meu canal no Instagram surgir  trabalhava com saúde mental. Aí comecei a postar sobre as minhas experiências em BH, dando dicas de coisas pra fazer e o canal foi acontecendo. Eu e a Bel nos conhecemos logo no início do meu canal e quando estava me preparando para casar. Como ela era referência no assunto, a procurei para pegar algumas dicas. Em um certo momento, decidi compartilhar com os meus seguidores minha indignação sobre acontecimentos do dia a dia que alimentam o preconceito contra pessoas gordas, a chamada gordofobia. E foi assim que, anos depois, nós duas nos reencontramos e sentimos a vontade de falar sobre temas que geram sofrimento às mulheres, com base em nossas próprias vivências.

Do que se trata o grupo Conexões Femininas?

Virgínia Sasdelli - É um Grupo Terapêutico voltado para mulheres com o objetivo de debater temas sobre relacionamentos, sexualidade, gordofobia, autoimagem e corpo. Vamos explorar o universo feminino, criando conexões e pensando juntas em maneiras de minimizar sofrimentos e vislumbrar novos caminhos ao lado de uma comunidade segura. Trata-se de entender melhor o nosso universo e de assumir o controle de nós mesmas e de nossas escolhas.
Bel Ornelas - O grupo surgiu com o objetivo de falar mais sobre as questões que dizem respeito às mulheres. Os homens crescem aprendendo a amar várias coisas e a mulher cresce aprendendo a amar apenas os homens. Um dos caminhos é exatamente buscar mais as outras relações e descolonizar os afetos. Vamos amar outras coisas, vamos estar mais com a família, com as amigas, apreciar o trabalho, o lazer. É preciso olhar para nós, mulheres, de forma diferente, sem ser nesse lugar de rivalidade e competição. O grupo de mulheres forma uma comunidade feminina que se apoia, já que temos dores iguais que podem ser compartilhadas.

"A questão da autoimagem influencia diretamente na baixa autoestima, o que se reflete em todos os setores da nossa vida, seja pessoal ou profissional"

Virgínia Sasdelli

Como o grupo vai funcionar?

Virgínia Sasdelli - Abrimos uma turma para que as interessadas pudessem se inscrever, mediante o pagamento de uma taxa. A princípio teremos um encontro semanal com duas horas de duração. Pensamos em um formato itinerante, acontecendo sempre em locais diferentes, para que seja algo leve e descontraído. O bate papo vai acontecer durante oficinas de pintura, entre outras atividades, para que se torne  ainda mais agradável. Queremos que todas as participantes se sintam à vontade, mesmo tratando de assuntos delicados. Acreditamos que para realmente criar uma conexão, os grupos devem ser menores, com no máximo 10 pessoas. O primeiro encontro foi realizado no bar Madame Geneva, no bairro Luxemburgo.

Por muito tempo a Bel esteve à frente do blog Casando em BH, que se tornou referência no assunto na capital mineira. Como essa experiência influenciou seu projeto atual?

Bel Ornelas - Minha vida pessoal sempre esteve muito ligada à minha vida profissional. Quando eu deixei de fazer o Casando em BH, em 2019, foi exatamente porque eu sentia que o casamento não era algo que eu quisesse vender como um acontecimento perfeito e sem problemas. Percebi que eu estava fazendo parte desse coro que associa a felicidade da mulher apenas ao casamento, mesmo sabendo que casar nem sempre vai ser legal para todos. Naquela época, meu casamento estava em crise e optei por voltar a me dedicar à psicologia. O divórico veio em 2022. Antes disso, quando os meus pais se separaram, eu presenciei a decadência da minha mãe que, aos 35 anos de idade, perdeu seu vigor e vivacidade passando a não conseguir cuidar nem dos próprios filhos. Essas experiências me mostraram que o casamento pode até ser um modelo de convivência interessante, mas não pode ser visto como uma regra na qual todas as mulheres devem se encaixar. Então, fiz especialização em Terapia de Casal, Psicossociologia e Psicosexologia para entender melhor a questão dos relacionamentos que sempre foram causa de muito sofrimento feminino. O meu objetivo era compreender as várias formas de se relacionar. Hoje em dia, inclusive, o casamento pode ser vivido de diversas formas, em quartos separados, casas separadas. Porque a realidade é que poucos casais conseguem viver um casamento nos moldes tradicionais a longo prazo.

O feminismo luta pela igualdade de gênero, busca acabar com o sexismo e questiona a dominação masculina. Como o movimento tem ajudado a mulher em suas escolhas?

Bel Ornelas - Acredito que com essa nova onda do feminismo temos conseguido repensar antigos modelos impostos à mulher pela sociedade, entre eles a obrigatoriedade do casamento e da maternidade. Muitas já assumem que não querem se casar e, muito menos, ter filhos. Penso que adotar uma postura mais crítica com relação ao casamento e aos relacionamentos não significa ser contra os homens. Significa que é preciso repensar os antigos modelos. Não sou pró divórcio, sou pró felicidade, seja da forma que for. Eu mesma estou em um relacionamento e, em breve, pretendemos morar juntos. Nossa luta é para que as nossas decisões sejam tomadas de forma consciente, de acordo com o que acreditamos e sentimos, e não pelo o que nos é imposto. Que nossas escolhas aconteçam de forma mais orgânica e autoral e não para seguir um script. Valorizar o feminino não significa desvalorizar o masculino, mas é importante olhar para as questões de gênero.

O que  significa deixar de  romantizar a relação?

Bel Ornelas - Significa que temos de superar a ideia de príncipe encantado e mudar o conceito de que cabe apenas à mulher cuidar da relação. Por longos anos nos foi incutido que uma mulher separada não poderia ser aceita na sociedade. Um pensamento que, ainda hoje, leva muitas de nós a se anularem na relação. Então, acredito que para evitar futuros problemas e frustrações, é preciso ter um olhar sóbrio para a realidade. No casamento, por exemplo, é necessário discutir antes como será a divisão das tarefas da casa, a questão financeira, coisas que parecem pequenas mas que, no dia a dia, influenciam muito na convivência do casal.

Você diz que a mulher ainda está em um lugar atrasado da sexualidade. O que valida a sua afirmação?

Bel Ornelas - Desde pequenas aprendemos a controlar os nossos desejos, o que pode levar a um lugar de não ter desejo sexual e de se sentir completamente afastada da própria sexualidade. Até mesmo a questão do homem supostamente ter mais vontade de transar tem a ver com a forma como os gêneros são construídos. Os sexy shoppings foram criados para homens, como se a mulher também não pudesse ter desejos e nem se dar prazer. E o sexo, teoricamente, ainda segue sendo um indicador de relacionamento saudável ou não. Com isso, a mulher se sujeita a fazer sexo sem vontade apenas para manter um status quo. Nesse contexto de repressão, é difícil entender a própria sexualidade. Por incrível que pareça, a masturbação feminina ainda hoje é um tabu. Existe um total desconhecimento e uma opressão sobre o assunto. É preciso saber separar relação sexual do prazer sexual. Mastubação não compete com a relação, são duas coisas distintas. O  relacionamento consigo mesma e com sua própria sexualidade é diferente do relacionamento com o parceiro.

A gordofobia é o preconceito contra pessoas gordas sob a justificativa de que estar acima do peso seja sinônimo de inferioridade ou de doença. Como isso afeta a sua vida?

Virgínia Sasdelli - Há muitos anos luto contra a balança e o preconceito. Já cheguei a fazer tratamentos que me deixavam mais magra e, ao mesmo tempo, doente. A sociedade estruturou que apenas corpos magros podem ser belos. A consequência disso é o preconceito que enfrentamos diariamente, por meio de falas e atitudes gordofóbicas que aparecem toda hora, mesmo que inconscientemente. Em um evento uma senhora parabenizou o meu marido por ser casado com uma mulher gorda, como se ele tivesse me feito um favor. Se vou ao médico, por causa de uma gripe, que seja, ele fala que preciso emagrecer e chega a não me dar medicamento para o que eu preciso. A acessibilidade é difícil - veja as catracas dos ônibus - tudo é pensado para pessoas magras. São pequenas coisas do dia a dia que minam a autoestima da pessoa gorda.

"Os homens crescem aprendendo a amar várias coisas e a mulher cresce aprendendo a amar apenas os homens. É preciso descolonizar os afetos"

Bel Ornelas

Você sempre se sentiu à vontade para falar sobre o assunto abertamente?

Virgínia Sasdelli - Ao contrário de muitas mulheres, tenho acesso a terapia para lidar com tudo isso sem me deixar afetar tanto. Aos poucos comecei a compartilhar minhas impressões sobre o assunto nas redes sociais e vi que muitas pessoas  sofrem o mesmo preconceito, simplesmente por estarem fora de um padrão estético pré estabelecido. Daí nasceu a vontade de criar um grupo de apoio mútuo, para que elas mesmas entendessem que não tem nada de errado em ter uma constituição física fora de um estereótipo exigido pela sociedade. Nem se eu quisesse eu seria uma pessoa magrinha. Precisamos vencer essa pressão estética. É importante falar sobre o assunto, mas às vezes, nem as pessoas próximas a nós compreendem o que passamos.

Como o preconceito afeta diretamente a vida das pessoas gordas?

Virgínia Sasdelli - A questão da autoimagem influencia diretamente na baixa autoestima, o que se reflete em todos os setores da nossa vida, seja pessoal ou profissional. Imagine a insegurança ao tentar uma vaga de emprego? As empresas, realmente, não querem contratar uma pessoa gorda. Muitas pessoas acreditam que nunca terão um parceiro por se sentirem inferiores. Então imagine como a parte emocional de uma pessoa gorda vive abalada.  A rede de apoio nos ajuda a  ficar mais forte.

Qual o papel da moda em tudo isso?

Virgínia Sasdelli - O pior possível, estabelecendo padrões completamente irreais até para mulheres magras. Esteve menos ruim quando algumas marcas tentaram melhorar suas imagens sendo mais inclusivas. Algumas marcas plus size investem em roupas bonitas, interessantes e não apenas em algo para tapar o corpo.

Quais cuidados os pais devem ter com crianças acima do peso?

Virgínia Sasdelli - Esses dias recebi um meme de uma menina gorda de uns 5 anos, com umas bandagens pelo corpo, simulando uma cirurgia plástica, dizendo: "quando eu ficar rica eu não direi nada. Haverá sinais". Tem noção da dimensão do preconceito, da não aceitação própria e da frustração que uma criança dessa pode carregar a vida inteira? Além do transtorno de imagem, ainda pode gerar transtorno alimentar. Então, precisamos ter cuidado para não transmitir para as crianças a ideia de que por estarem acima do peso são inadequadas ou inferiores. A inclusão começa dentro de casa.

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